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Em 1061 dois galegos assinaram acordo legal — e cada vez mais historiadores acreditam que se tratava de casamento gay

A fascinante e misteriosa história de Pedro Díaz e Munio Vandilaz na Espanha rural do século 11

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Victor Bianchin

Redator

Victor Bianchin é jornalista.

O que você esperaria encontrar nos arquivos de um convento medieval? Talvez contratos, bulas, livros de hinos, códices iluminados e uma ampla variedade de documentos administrativos e religiosos, certo? Pois bem, o que dificilmente entraria nessa lista é o que, na verdade, foi descoberto décadas atrás por historiadores no cartulário do mosteiro de San Salvador de Celanova, na província de Ourense, interior da Espanha.

Trata-se de um documento que parece falar sobre um casamento homossexual nos campos da Galícia do século 11. Um casamento gay na Espanha rural medieval? Essa é a pergunta que José Miguel Andrade, catedrático de História Medieval da Universidade de Santiago de Compostela, usou para intitular seu último artigo no portal The Conversation.

O questionamento é fascinante. Tanto pela história que parece sugerir, protagonizada por dois homens do século 11 chamados Pedro Díaz e Munio Vandilaz, quanto pelo que nos revela sobre a sociedade alto-medieval e sobre a Galícia de quase mil anos atrás. O próprio Andrade defende, em seu ensaio, que a Idade Média tem pouco a ver com a imagem sombria que se consolidou no imaginário coletivo.

O acordo dos dois homens

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No centro desse fascinante enigma está um documento legal assinado em 1061, escrito em latim e não muito extenso, e que ainda pode ser consultado na Espanha por meio do Consello da Cultura Galega. O texto, preservado no cartulário do mosteiro de Salvador de Celanova, é basicamente uma ata em que dois homens, Pedro Díaz e Munio Vandilaz, se comprometem a compartilhar a gestão da casa e da igreja de Santa María de Ordes, a qual, segundo sugere Andrade, corresponderia a uma paróquia que ainda hoje tem esse nome em Rairiz de Veiga, uma comarca de Ourense.

O fato de dois civis firmarem um acordo formal para gerenciar propriedades eclesiásticas pode soar estranho no século 21, mas não no século 11, lembra Andrade. "As igrejas e mosteiros faziam parte do patrimônio das famílias mais abastadas economicamente, e elas decidiam com total liberdade e autonomia o que fazer com ele", observa ele. "A Igreja ainda não tinha força e capacidade suficientes para exigir autonomia na gestão de seus bens".

Portanto, até aqui, nada de excepcional. Seria só um acordo a mais da Idade Média, preservado durante séculos entre os documentos empoeirados de um mosteiro antigo. Mas, ao ler o texto com atenção, é possível enxergar além. O primeiro detalhe curioso é que Pedro e Munio não compartilham sobrenomes, o que indica que se tratam de dois amigos.

Outro aspecto interessante destacado por Andrade é que o acordo especifica que ambos, Pedro e Munio, são "proprietários em pé de igualdade" da igreja mencionada no acordo, no qual também se enumera de forma detalhada as funções que cada um deles deve assumir. As responsabilidades vão desde o atendimento dos hóspedes até o cuidado dos servos e das hortas.

"Cheios de fidelidade e verdade"

Novamente, até esse ponto, o documento não traz nada de excepcional, nem sugere que Pedro e Munio possam ser algo além de dois bons sócios. No entanto, à medida que a leitura avança, o texto "começa a adquirir um tom menos comum", observa Andrade. Entre os formalismos, o documento menciona que ambos respeitariam o acordo "como bons amigos, cheios de fidelidade e verdade" para sempre, dia e noite.

"Foram essas expressões emocionais, que poderiam ir além do mero formalismo documental, que levaram alguns historiadores a ver nesse pacto algo mais do que apenas um exemplo de fraternidade artificial", admite o especialista. Ele não é o primeiro a sugerir essa ideia. Andrade lembra que o famoso historiador americano John Boswell, da Universidade de Yale, mencionou o caso galego em “As bodas da semelhança”, um ensaio de 1996 no qual ele discute precisamente uniões homossexuais no período entre a Antiguidade e a Idade Média.

Uma dúvida que já dura várias décadas

O medievalista norte-americano, destaca Andrade, escolheu o documento preservado no cartulário do mosteiro de Ourense "como um dos que, segundo sua hipótese, encobria uma união afetiva e marital entre dois homens". Embora Boswell tenha sido o primeiro a fazer tal sugestão, antes dele outro historiador, o granadino Eduardo de Hinojosa, já havia notado a curiosa redação do acordo assinado em Ourense em meados do século 11.

Andrade ressalta que De Hinojosa foi um jurisconsulto que viveu entre 1852 e 1919 e chegou a pertencer à União Católica. Nessa época, predominavam "padrões mentais" que "não eram os mais adequados para explorar uma história de sentimento, sexo ou homossexualidade".

Desde a época de De Hinojosa, outros pesquisadores abordaram os possíveis significados do acordo firmado entre Pedro e Munio, além de John Boswell e do próprio Andrade. O filólogo e historiador galego Carlos Callón também se refere ao texto de 1061 em sua obra “Amigos e sodomitas”, publicada em 2011, onde reflete sobre a existência, durante a Idade Média, de relações sentimentais entre pessoas do mesmo sexo que eram mantidas não em segredo, mas de forma pública.

A "fraternidade artificial"

Embora o contrato galego tenha sido sugestivo o suficiente para captar a atenção de vários pesquisadores desde o século 19, tanto dentro quanto fora da Espanha, Andrade lembra que pelo menos parte de seu conteúdo pode ser enquadrada em um contexto maior: o da "fraternidade artificial". Esse termo descrevia um método, comum em outros países, que estabelecia um vínculo estreito, formalizado por contrato, entre pessoas de famílias diferentes.

Um artigo da “Revista de Archivos, Bibliotecas y Museos” de 1905 já dizia: "Encontrado com diferentes características e modalidades em todas as épocas da história (...) Esse vínculo é estabelecido por contrato entre indivíduos que geralmente não estão ligados por nenhuma outra relação de parentesco, os quais concordam em se considerarem irmãos, seja para se protegerem e defenderem mutuamente, seja para possuir e explorar bens em comum, ou para ambos os fins ao mesmo tempo".

A importância dos detalhes

No ensaio recém-publicado na The Conversation, Andrade insiste que a fraternidade artificial é "uma fórmula legal rastreável em grande parte da Europa da Alta Idade Média" e reconhece que o acordo entre Pedro e Munio trata de uma propriedade compartilhada por dois homens. No entanto, o especialista da USC se junta a outros autores ao destacar as peculiaridades do documento preservado em Ourense.

A chave, ele insiste, está nos detalhes. Ou seja, nas frases e "expressões emocionais" que, às vezes, parecem sugerir algo além de "mero formalismo documental". Até agora, as teorias e hipóteses têm se limitado ao campo da especulação. Ir além disso, dez séculos depois, não é simples.

A idade média não era tão retrógrada assim?

"Não é fácil a tarefa de interpretar o documento original", admite Andrade. No entanto, o pacto de 1061, segundo ele, serve para afastar a ideia de que a Idade Média foi uma era de barbárie. "Está longe de ser a época sombria, retrógrada e selvagem que alguns ainda imaginam", sublinha ele.

"É importante lembrar que, nessa época, houve até uma literatura homoerótica que nos informa de uma certa permissividade e reconhecimento nas relações afetivas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo", comenta o autor.

Resta a dúvida se o discreto, porém intrigante, acordo assinado por Pedro e Munio há 963 anos é uma demonstração de que, sim, dois homens poderiam viver uma vida semelhante à de um casamento heterossexual na Galícia do século 11.

Este texto foi traduzido e adaptado do site Xataka Espanha

Imagens| Wikipedia y Darío Álvarez (Flickr)

Via | Faro de Vigo

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