O povo venezuelano continua dividido após uma eleição conturbada e classificada como corrupta pelo partido declarado derrotado. O tempo dirá se essas eleições servirão para ajudar a economia abatida do país, mas, para constar, vamos relembrar uma história que aconteceu há apenas quatro anos. Na ocasião, os venezuelanos deram uma verdadeira aula de como combater uma crise acelerada.
Crise na Venezuela
Cerca de 10 anos atrás, uma grave crise econômica começou na Venezuela com a queda do barril de petróleo, marcada por hiperinflação, desvalorização da moeda, escassez de alimentos e medicamentos e aumento nos índices de pobreza. Nesse contexto, os salários em bolívares (a moeda local) tornaram-se quase irrisórios devido à inflação.
Em 2019, o número de refugiados e migrantes venezuelanos chegou a 3 milhões. Enquanto isso, muitos dos que permaneceram no país foram forçados a encontrar formas inovadoras de sobreviver num contexto econômico e social complicado, no qual pessoas que trabalhavam em empregos de salário mínimo podiam ganhar o equivalente a US$ 5 por mês (cerca de R$ 27), em média.
Inovação
Dessa maneira, enquanto alguns acumulavam bolívares praticamente sem valor para pagar as compras nos mercados, outros buscavam uma terra virtual de oportunidades, passando horas em frente a telas de computador e celulares caçando dragões verdes em um RPG multijogador online.
RuneScape
Lançado originalmente em 2001 pela desenvolvedora britânica Jagex, RuneScape tem duas versões principais: RuneScape 3 e Old School RuneScape (OSRS). Esta última é a versão mais antiga e popular, além de ser a favorita dos jogadores venezuelanos por ser a mais fácil de rodar e não consumia dados excessivos.
O jogo é online, em massa para multi-jogadores (um MMORPG) gratuito (esse conceito é muito importante) extremamente popular desde seu lançamento. Nele, jogadores podem ganhar ouro virtual (GP ou Gold Pieces), vendidos em mercados secundários por dinheiro no mundo real. Embora isso seja contra os termos de serviço do RuneScape, a prática de vender ouro por dinheiro de verdade é conhecida como "Real World Trading" (RWT) e existe há anos no setor.
Economia interna e externa
Apesar do jogo focar em lutas e conceitos de RPG, é muito importante também considerar tanto a economia interna que tornava tão peculiar a compra de itens entre usuários, e a "externa" que permitia que aqueles que não tinham tempo ou vontade de executar as tarefas conseguissem ouro e comprassem por meio de transações reais as "moedas" do jogo.
Como ganhar ouro no RuneScape podia ser relativamente simples e o valor da moeda venezuelana estava em queda livre, não demorou muito para que muitos venezuelanos percebessem que poderiam ter uma fonte extra de renda. Assim, passaram a dedicar seu tempo ao "farming" (coleta) de ouro no jogo. De fato, com o passar do tempo, surgiram verdadeiras "fazendas de ouro", espaços onde os jogadores venezuelanos passavam horas acumulando recursos virtuais para depois vendê-los a compradores de outros países.
Por profissão: agricultura
Sem brincadeira, o impacto do início dessa economia baseada em RuneScape significou para alguns venezuelanos seu principal meio de subsistência. Os ganhos variavam, mas alguns podiam faturar mais jogando RuneScape do que trabalhando em empregos tradicionais no país. E mais: o fato da renda ser em dólares ou criptomoedas, e não em bolívares, era uma vantagem significativa.
Por outro lado, no entanto, também havia uma desvantagem. Essas "fazendas de ouro" e suas vendas levaram à criação de certos estigmas e os jogadores da comunidade global do RuneScape começaram a associar venezuelanos à prática de "farming" de ouro. Não só isso, mas o jogo – na época com um recorde do Guinness devido ao número de usuários – chegou a ter 70% de venezuelanos, que em muitos casos não sabiam jogar e se dedicavam apenas a gerar ouro para vendê-lo.
Cavernas fantasmas
Digamos que era o enclave agrícola mais lucrativo no jogo, controlado por centenas de milhares de jogadores venezuelanos em mais de cem servidores, que se destacavam no jogo por usarem chapéus roxos. E assim começou uma batalha. Fóruns como o Reddit repercutiram o grande número de usuários com nomes "hispânicos" que estavam no jogo apenas ganhando ouro. Táticas foram desenvolvidas para encontrá-los e atacá-los para roubar todo o "saque" acumulado.
Clãs
O jogo evoluiu de tal forma que os clãs, ou melhor "máfias", começaram a existir. Havia grupos que se dedicavam a simplesmente procurar venezuelanos para saqueá-los, e outros que se dedicavam a defendê-los em troca de um "tributo" (geralmente metade do ouro que cultivavam). Dessa forma, se alguém se aproximasse das cavernas, um exército rapidamente aparecia para defender o forte, enviando reforços de outros servidores.
Não importava que o número de jogadores anglo-saxões fosse igual ao número de venezuelanos, em algum momento da batalha eles se cansavam, enquanto os primeiros eram inesgotáveis. O que faz sentido, já que a base de seu sustento na vida real estava literalmente em jogo.
De quanto estamos falando?
Cultivar as cavernas de forma otimizada gerava cerca de 20 milhões de moedas de ouro por hora. Em turnos ininterruptos de 24 horas, os grupos mineravam até 480 milhões de moedas de ouro em 24 horas. Naquela época, os sites de vendas marcavam um dólar para cada 8,5 milhões moedas de ouro. Ou seja, 480 milhões de moedas por dia geravam 56 dólares. Não parece muito, mas quando os salários do mundo real ficam entre US$ 3 e US$ 8 (de R$16 a 43), esse valor pode ser vital.
Inflação
Assim como na economia real, os preços do ouro no jogo também começaram a ser afetados, o que levou à inflação interna na economia virtual do RuneScape. Sim, a eficiência da Venezuela na mineração de ouro com seus 150 servidores 24 horas por dia fez com que ele começasse a perder valor. Curiosamente, os venezuelanos estavam vivendo com a moeda virtual o mesmo que acompanhavam em sua moeda nacional.
Limite de ‘farming’
A Jagex, percebendo o que estava acontecendo dentro do jogo, decidiu agir colocando um limite na capacidade de cada usuário de coletar ouro, banindo a comunidade venezuelana. Assim terminou uma história que pode ser perfeitamente entendida como um exemplo de como a economia funciona.
Além disso, o que aconteceu reflete a criatividade e a resiliência dos venezuelanos que vivem em circunstâncias extremas. Por meio da comunidade do RuneScape, esses jogadores encontraram uma maneira de sustentar suas famílias e se manterem firmes em meio a uma crise econômica devastadora.
Para a história, fica o registro de como um videogame, originalmente projetado como puro entretenimento, foi transformado em uma ferramenta de sobrevivência em tempos difíceis.
Imagem | Jonathan Alvarez C , Jagex
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