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Negacionismo parece ter chegado a uma das poucas áreas da ciência que escaparam: a visão

Tem influenciador por aí dizendo que você tem que parar de usar óculos para dirigir porque a miopia é espiritual. Enquanto isso, a ciência tem uma epidemia para resolver

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Victor Bianchin

Redator

Victor Bianchin é jornalista.

"Pode ser que tenham dito que você precisa de óculos, mas, na verdade, é mentira" — é o que diz a autodeclarada “coach mestra holística”' e “influencer” canadense Samantha Lotus em um de seus vídeos no TikTok. "Existem razões mentais, emocionais, físicas e até espirituais pelas quais você não vê", defende a moça.

Mas parece que a razão mais importante, segundo o papo da sujeita, é  financeira: ela vende um curso de 11 dólares que, evidentemente, não serve para absolutamente nada. Será que realmente chegamos ao momento dos negacionistas dos óculos? É o que parece.

Uma epidemia difícil de enxergar

Vamos falar, por exemplo, da miopia, o problema de visão mais comum do planeta. Nos últimos 50 anos, os casos de miopia dobraram em muitas regiões do mundo, como os EUA e a Europa. Na Ásia, por exemplo, a situação vai muito além — estima-se que, na China, há cerca de 50 anos, apenas entre 10 e 20% da população tinham miopia. Agora, 90% dos jovens adultos a possuem. Em Seul, são 96,5% dos homens de 19 anos.

O que está acontecendo? É simples: os globos oculares estão crescendo excessivamente. A causa da miopia não está em razões mentais, emocionais ou espirituais, mas sim no fato de que o globo ocular do ser humano tem crescido além do normal. Por isso, a miopia surge durante a época escolar e pode piorar enquanto ocorre o crescimento.

Mas qual é a razão pela qual, de repente, tantos globos oculares começaram a crescer excessivamente? Essa é a pergunta que muitos pesquisadores têm se feito. Especialmente porque a rapidez com que essa epidemia de miopia surgiu parece descartar uma mudança genética. Como disse Seang Mei Saw, da Universidade Nacional de Cingapura, "é necessário recorrer a um fator ambiental".

"De tanto ler, você vai ficar cego..."

Durante anos, pensou-se que a principal causa era o tempo que as crianças dedicavam ao estudo ou a olhar "de perto" coisas como livros ou telas. Agora, sabe-se que a origem está no déficit de dopamina devido à falta de exposição à luz solar.

E, aparentemente, fazia sentido. Segundo Eva van der Berg, "os adolescentes de Xangai dedicam cerca de 14 horas semanais a fazer lição de casa, em comparação a 5 horas dos jovens britânicos e 6 dos norte-americanos". Mas a história vai mais além.

No final da década de 2000, os pesquisadores começaram a realizar estudos muito mais amplos e chegaram à conclusão de que o que estava por trás de tudo isso era a falta de exposição ao ar livre. Embora haja certo debate, segundo o consenso atual, a dopamina intraocular controla o crescimento do globo ocular (e, assim, limita sua deformação). O problema é que a produção dessa dopamina precisa de exposição à luz solar para estar em níveis ótimos: estimam-se cerca de três horas diárias em ambientes com cerca de 10 mil lumens.

E não se pode "treinar" a visão?

A ideia de que os óculos são parte do problema não é nova. Já na década de 1920, o oftalmologista William Bates defendeu energicamente que se deveria optar por exercícios corretivos em vez de usar lentes. Também se estudou em detalhe o papel que "o cansaço, o estresse ou a tensão muscular" poderiam ter nesse tipo de problema ocular.

No entanto, já no final da década de 1990, quase todas as linhas de pesquisa sobre exercícios para tratar a miopia foram descontinuadas porque, embora houvesse resultados parciais satisfatórios, eram muito pequenos e não conseguiram ser sistematizados. É sim possível treinar a visão e, em alguns contextos, isso pode ser bem-sucedido — mas, pelo que sabemos a longo prazo, não traz grandes resultados.

E estamos falando dos melhores programas de treinamento disponíveis, não de uma aula de 11 dólares que convida as pessoas a deixarem de usar óculos para dirigir. Infelizmente, até hoje, apenas as lentes corretivas, a cirurgia e alguns tipos de tratamentos farmacológicos têm evidências concretas para tratar a miopia. O restante é, simplesmente, pseudociência.

O negócio da pseudociência

Logo antes da pandemia, estimava-se que os tratamentos falsos para Alzheimer e outras demências movimentavam cerca de 3,2 bilhões de dólares. Não há dados confiáveis sobre os montantes que a pseudociência movimenta, mas tudo indica que é um mercado que não parou de crescer nas últimas décadas.

Isso (e os bilhões de pessoas que estão conectadas à internet) cria um espaço para que qualquer bobagem sem sentido ache um nicho de mercado. Mas esses discursos vão além: são poços de confusão, irresponsabilidade e problemas. A questão não é que uma influenciadora que quer abolir os óculos viralize, mas sim que esse tipo de mensagem esteja alcançado muito mais pessoas do que poderíamos imaginar, e com muito mais efetividade.

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