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Nem implorando de joelhos: Japão tem milhares de trabalhadores que não conseguem se demitir

  • O país tem jornadas extensas e uma cultura de trabalho que dificulta as demissões

  • Os trabalhadores que têm dificuldade em lidar com a ruptura ganharam um aliado: agências intermediadoras de demissões

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Victor Bianchin

Redator

Victor Bianchin é jornalista.

Há alguns anos, quando precisou batizar sua empresa, o executivo Shiori Kawamata decidiu apostar na clareza. Optou por Momuri, que, em japonês, significa "Estou farto!" ou "Não aguento mais fazer isso". Não é algo convencional, mas resume de forma precisa a missão dessa empresa de Tóquio, inaugurada em 2022, que vem ganhando fama nos últimos anos. Sua missão é ajudar funcionários que querem deixar seus empregos e não sabem como.

E a Momuri não é a única nesse segmento. Em um país com uma cultura de trabalho rigorosa, onde não são incomuns jornadas extensas no escritório e que, inclusive, tem uma palavra para descrever a morte por excesso de trabalho (“karoshi”), a gestão de demissões se tornou um negócio em crescimento.

A raiz do problema

Seja por excesso de trabalho, por divergências com seus chefes ou simplesmente porque querem buscar novos horizontes, alguns empregados, em determinado momento, decidem deixar seus cargos. No entanto, nem sempre é fácil. Em um país com uma cultura de trabalho rígida, onde a paciência e a lealdade são altamente valorizadas, apresentar uma carta de demissão pode ser complicado.

Até não muito tempo atrás, era comum no Japão que um trabalhador permanecesse por toda sua carreira na mesma empresa. E, embora essa tendência tenha mudado nos últimos anos, em 2021 a média de permanência em um emprego ainda era de 12,3 anos, número que subia para 21,2 anos no setor de eletricidade. Esses dados são bem superiores aos registrados, por exemplo, nos EUA.

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Yuki Watanabe — pseudônimo de um japonês de 24 anos que relatou seu caso recentemente à CNN — explica que, após um período trabalhando de sol a sol e se sentindo fisicamente doente, decidiu abandonar seu cargo. O problema, segundo Watanabe, era que ele não queria que seu chefe rejeitasse sua demissão e o obrigasse a continuar trabalhando por mais tempo.

Ele não é o único. Uma empresa familiarizada com casos semelhantes contou à rede americana que já encontrou funcionários cujos chefes rasgaram suas cartas de demissão até três vezes. "Eles não os deixavam demitir-se, nem mesmo quando se ajoelhavam no chão pedindo", declarou o porta-voz.

Se você não consegue, procure ajuda

Nesse cenário, cada vez mais japoneses estão procurando ajuda especializada ao decidirem deixar seus empregos. Geralmente, eles têm dificuldade em lidar com a situação ou querem evitar o constrangimento de ter que bater na porta de seus chefes para entregar a demissão.

A Momuri, criada em 2022, é uma das empresas que encontraram um nicho de mercado lucrativo nessa necessidade. Administrada pela Albatross Co e com sede em Tóquio, ela oferece um serviço de gestão de demissões. Por 22 mil ienes (R$ 820), seus profissionais se encarregam de notificar a empresa sobre a demissão, negociar a saída do trabalhador e, caso surjam dificuldades, oferecer consultoria. Para trabalhadores de meio período, a empresa cobra 12 mil ienes (R$ 450).

A Momuri talvez seja a que gerou maior interesse na mídia, mas não está sozinha. Segundo a agência de notícias Kyodo News, existem mais de uma centena de companhias que oferecem serviços semelhantes, com tarifas que variam entre 20 e 50 mil ienes. O Financial Times cita algumas, todas com nomes igualmente sugestivos: Yametara Iinen ("Está tudo bem renunciar"), Yamerun desu ("Vamos renunciar") e Saraba ("Adeus"). Essas empresas surgiram antes da pandemia, mas o negócio parece ter ganhado popularidade após a crise sanitária.

Um negócio promissor

Quer seja para evitar o estresse de uma conversa desconfortável com um chefe autoritário, ou para não lidar com as complicações administrativas que uma demissão pode causar, o fato é que empresas como a Momuri têm conseguido uma carteira sólida de clientes. Shioro Kawamata, diretor da empresa, afirma que, no último ano, ela recebeu cerca de 11 mil consultas. A companhia oferece até um desconto de 50% para aqueles que utilizarem seus serviços para solicitar uma segunda demissão.

O serviço é utilizado tanto por trabalhadores jovens, que estão lidando com suas primeiras experiências laborais, até por funcionários experientes — há alguns meses, a Momuri informou ao Japan Times que 40% de seus clientes são profissionais com mais de 40 anos. Na Europa, a existência de negócios assim pode parecer surpreendente, mas, no Japão, eles vêm ganhando notoriedade. Uma pesquisa da En Japan mostra que 70% dos entrevistados estão cientes da existência dessas agências.

Gogatsubyō, a alta temporada das demissões

Curiosamente, a Momuri parece ter sua própria alta temporada de atividade: no início de maio, quando os trabalhadores voltam de suas férias da Ōgon Shūkan (“Semana Dourada”) e retornam aos seus escritórios. Essa época traz o “gogatsubyō”, a "doença de maio", uma espécie de depressão pós-férias, e a agência de demissões registra um aumento surpreendente nas solicitações. Este ano, foram mais de 150 pedidos em um único dia.

Esse fluxo se explica, em parte, pelas mudanças que a própria sociedade japonesa está vivenciando, mergulhada em uma profunda crise de natalidade e envelhecimento que dificulta para as empresas a contratação de mão de obra. Esse cenário dá mais aos jovens mais segurança para considerarem uma mudança caso não estejam satisfeitos com seus empregos. Hiroshi Ono, professor da Universidade Hitotsubashi, disse à CNN que há uma mudança na mentalidade geracional e os jovens já não hesitam em pedir demissão.

Japão, o país do karoshi

O Japão não está entre os países com as maiores médias de horas trabalhadas por ano, segundo dados da OCDE, mas, mesmo assim, não são raras as jornadas extenuantes. Em 2015, a AOTS (Associação para Coorperação Ultramarinha e Parcerias Sustentáveis)  calculou que cerca de 20% dos trabalhadores de 30 a 40 anos trabalhavam entre 49 e 59 horas por semana, e 15% trabalhavam pelo menos 60 horas. Na prática, segundo o grupo, isso representa quatro horas extras de trabalho por dia e um retorno ao lar já no período noturno.

Em sua reportagem, a CNN menciona casos concretos de funcionários que faleceram após acumular 159 horas extras em um mês, ou até mais de 200, como aconteceu com um jovem médico de Kobe que acabou tirando a própria vida há dois anos.

No Japão, existe até uma palavra para descrever a morte por excesso de trabalho, “karoshi”, um fenômeno reconhecido desde o final dos anos 80 e que resulta em indenizações vultosas. Em 2015, o Ministério do Trabalho japonês contabilizou 2.310 vítimas. E, nos últimos dois anos, o Statista informa que o número de suicídios relacionados a problemas laborais no país está próximo de 3 mil ao ano, embora tenha sido registrado um declínio de 3% em 2023.

Este texto foi traduzido e adaptado do site Xataka Espanha

Imagem | Andrew Leu (Unsplash)

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