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A cada oito dias, uma pessoa idosa no Japão é morta por um membro da família; eles são a face oculta de sua crise demográfica.

A crise do envelhecimento, a pandemia e a própria cultura do país criaram um cenário propício para a explosão das “Care Killing”.

Assassinatos no Japão aumentam cada vez mais. Imagem: Unsplash
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Sofia Bedeschi

Redatora

Jornalista com mais de 5 anos de experiência no ramo digital. Entusiasta pela cultura pop, games e claro: tecnologia, principalmente com novas experiências incluídas na rotina. 

Em setembro do ano passado, o Japão se deparou com uma realidade chocante. Embora já fosse de conhecimento público que o país enfrenta um grave problema de envelhecimento populacional, poucos números ilustraram essa crise tão bem quanto o mais recente levantamento do governo sobre as "mortes solitárias":

  • 28.330 idosos morreram sozinhos.
  • Em 4.913 casos, a polícia demorou duas semanas ou mais para reconhecer a morte.

Se esse dado já era preocupante, há algo ainda pior.

O fenômeno da “Care Killing”

O Japão vem enfrentando uma crise crescente de "Care Killing" – um fenômeno em que familiares exaustos acabam tirando a vida dos parentes que cuidam. Essa situação se intensificou nos últimos anos, agravada pelo isolamento forçado durante a pandemia de COVID-19.

Entre 2011 e 2021, foram registrados 443 mortes em 437 casos de assassinato ou suicídio ligados à fadiga do cuidador, segundo um estudo da professora Etsuko Yuhara, especialista em bem-estar social da Universidade Nihon Fukushi.

Em outras palavras, a cada oito dias, um idoso no Japão foi assassinado por um membro da família que atuava como seu cuidador.

O estudo ainda revelou quem são os principais responsáveis por esses crimes:

  • Cônjuges (214 casos);
  • Filhos adultos (206 casos);
  • O restante envolve netos, irmãos e outros parentes.

Os fatores por trás da crise

A mídia japonesa aponta que o peso emocional, físico e financeiro de cuidar de um parente doente – especialmente em isolamento – é uma das principais causas dessas tragédias. Muitas vezes, os cuidadores também são idosos, enfrentando seus próprios desafios físicos e psicológicos, e acabam presos em uma realidade sem perspectivas para o futuro.

A falta de apoio externo e problemas familiares preexistentes agravam ainda mais o cenário, levando alguns a tomar decisões extremas, como o assassinato seguido de suicídio.

Casos recentes

A pandemia agravou esse problema, cortando as redes de apoio comunitárias e sobrecarregando ainda mais o sistema de saúde japonês.

  • Haruo Yoshida, de 86 anos, estrangulou sua esposa de 81 anos, que estava doente, após anos cuidando dela.
  • Em Osaka, um casal de 83 anos foi encontrado morto: o marido enviou uma mensagem anunciando seu suicídio, logo depois de assassinar a esposa.
  • Fujiwara Hiroshi empurrou sua esposa paralisada no mar, após cuidar dela por mais de 40 anos.

A desesperança tem levado até mesmo à recriação de práticas semelhantes ao "ubasute", uma antiga tradição japonesa na qual idosos eram abandonados nas montanhas.

Um exemplo recente é o de Ichiaki Matsuda, que deixou sua mãe de 86 anos sozinha em um parque por não suportar mais o estresse de cuidar dela. A idosa morreu devido à exposição ao frio.

Um problema que só tende a piorar

O Japão enfrenta um envelhecimento acelerado da população. Atualmente, mais de 5,5 milhões de japoneses precisam de cuidados diários, e quase 30% dos cuidadores têm mais de 70 anos.

A rotina de cuidar de um familiar doente, com tarefas físicas e emocionais exaustivas, tem levado cada vez mais pessoas ao limite do inimaginável.

O documentário que expôs a crise ao público

O problema das "Care Killing" chegou até a televisão japonesa. Um documentário da NHK relatou a história de Shigeru, que cuidava de sua esposa Sachiko após ela sofrer uma paralisia lombar.

A rotina exaustiva de acordar às 4 da manhã, limpar a casa, alimentá-la e cuidar de suas necessidades o consumiu emocionalmente. Após ouvir repetidos pedidos da esposa para que "acabasse com seu sofrimento", Shigeru, em um ato de desespero e culpa, acabou asfixiando-a.

E não para por aí

O documentário também apresenta a história chocante de Ryuichi, um homem que abandonou o trabalho para cuidar da mãe com demência.

Sem renda, mergulhado na pobreza e completamente esgotado, ele acabou tirando a vida da própria mãe – e tentou cometer suicídio em seguida.

Histórias como essas revelam um padrão cruel: cuidadores presos entre o peso da responsabilidade cultural e a falta de apoio do sistema acabam enxergando nas decisões extremas a única saída possível.

O que diz o governo japonês?

O governo japonês já implementou algumas políticas de assistência e sistemas de seguro para cuidados de longo prazo, mas esses esforços não têm sido suficientes para atender às demandas crescentes de uma sociedade cada vez mais envelhecida.

Um dos maiores desafios é o custo elevado das instituições de cuidados. Muitas famílias simplesmente não conseguem pagar, já que as mensalidades costumam ultrapassar os 100 mil ienes. Como consequência, parentes acabam assumindo o papel de cuidadores sem qualquer preparação.

Falta de profissionais e o estigma da profissão

Além dos custos, há outro problema grave: a falta de profissionais qualificados no setor de cuidados. Essa escassez é causada por salários baixos e pelo estigma que ainda existe em torno da profissão, afastando novos trabalhadores da área.

Especialistas como Etsuko Yuhara defendem que a única solução viável é melhorar as condições de trabalho e, se necessário, abrir as portas para trabalhadores estrangeiros, a fim de suprir a crescente demanda.

O impacto cultural: um ciclo de isolamento e exaustão

A cultura japonesa tem um papel central nesse drama. Assim como em muitos países da Ásia, cuidar dos pais idosos é visto como um dever moral inquestionável. No entanto, essa expectativa social, somada ao isolamento e à falta de apoio profissional, deixa os cuidadores presos em um ciclo de esgotamento físico e emocional.

Durante a pandemia, essa solidão se intensificou ainda mais, impedindo muitos cuidadores de buscar ajuda ou até mesmo de compartilhar suas dificuldades.

Uma prisão emocional

O cuidado de longo prazo não apenas esgota fisicamente, mas também isola socialmente. O afastamento do mundo exterior, combinado com a pressão psicológica e, em muitos casos, abusos verbais ou físicos por parte dos idosos doentes, transforma a rotina dos cuidadores em uma prisão emocional.

Estima-se que cerca de 20% dos cuidadores japoneses sofrem de depressão, agravada pela crença de que cuidar dos idosos é um dever inescapável – algo que não se pode rejeitar, por mais pesado que seja.

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