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Houve um tempo em que acreditávamos que os pássaros migravam para a Lua; até que uma flecha lançada na África caiu na Alemanha

  • Ao longo dos séculos, surgiram teorias — cada uma mais absurda que a anterior — para tentar explicar os movimentos migratórios das aves.

  • Uma cegonha abatida na Alemanha acabou se tornando a prova involuntária de que elas não viajavam para a Lua nem hibernavam debaixo d'água.

Aves caindo na Alemanha. Imagem: Thula Na
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Sofia Bedeschi

Redatora

Jornalista com mais de 5 anos de experiência no ramo digital. Entusiasta pela cultura pop, games e claro: tecnologia, principalmente com novas experiências incluídas na rotina. 

A primavera sempre foi uma época de que eu gostei. Não por causa das horríveis processionárias, mas pelo retorno das andorinhas e, principalmente, das cegonhas. Depois de um longo inverno, elas voltam para casa para aninhar. Agora imagine a surpresa se, num belo dia, uma dessas cegonhas aparecesse na sua cidade com o pescoço atravessado por uma flecha de 80 centímetros.

Pois deixe de imaginar, porque isso aconteceu de verdade em 1822, em uma cidade alemã. E longe de ser apenas uma curiosidade, o episódio se tornou um fato crucial para desvendar o mistério de por que as aves desapareciam no inverno.

A dúvida

Hoje, isso não é mais nenhum mistério — é algo que aprendemos na escola desde pequenos —, mas há poucos séculos, ninguém sabia por que, de repente, as aves iam embora no outono e só reapareciam na primavera. Esses processos migratórios, nos quais até os menores pássaros percorrem milhares de quilômetros sem parar, eram incompreendidos.

Isso levava os pensadores da época a criarem hipóteses e teorias que, na falta de provas concretas, acabavam sendo aceitas sem grandes questionamentos.

Uma das respostas era evidente. E não poderia ser outra senão...

Aves alienígenas

Era nisso que acreditava Charles Morton, um acadêmico de Harvard que, no século XVII, sugeriu que o motivo pelo qual algumas aves desapareciam no inverno era porque migravam... até a Lua. É provável que você tenha arqueado a sobrancelha pensando algo como "impossível, não podiam ser tão ingênuos", mas é preciso se colocar no lugar de quem não tinha como comprovar o fenômeno e buscava respostas para um mistério real.

O que se sabia é que as aves desapareciam durante meses, mas não para onde iam. E como eles podiam ver a Lua de Massachusetts, mas não a Colômbia, a conclusão parecia óbvia. Mas essa não era a única teoria absurda da época. Aristóteles, ainda no século IV a.C., já havia teorizado que as aves poderiam se transformar em outras espécies ou até hibernar debaixo d'água. Morton rejeitou essa ideia porque, para ele, era fantasiosa demais (não como a sua própria teoria, é claro).

O flechazo

Morton chegou a calcular que a viagem até a Lua levaria um mês de ida e outro de volta, com as aves dormindo a maior parte do tempo e sobrevivendo graças às reservas de gordura corporal. A verdade é que, na ausência de teorias melhores, a ideia não era tão ruim assim (apesar do tom de brincadeira, gente, estamos falando do século XVII e dos recursos limitados da época).

Ainda assim, aos poucos foi se fortalecendo a noção de que essas aves europeias migravam para outros lugares durante o inverno. E a prova definitiva veio graças a uma cegonha.

Em um dia de 1822, no norte da Alemanha, alguém abateu uma cegonha — que, para surpresa geral, caiu com uma flecha de 80 centímetros atravessando o pescoço. A pergunta já não era como ela conseguia voar com um ferimento desses, mas de onde, afinal, aquela flecha tinha vindo.

Original

Pfeilstorch

O corpo da cegonha foi levado para a Universidade de Rostock, onde os pesquisadores examinaram o projétil e concluíram que se tratava de uma flecha pertencente a algum grupo do centro da África. Como era impossível — ou extremamente improvável — que alguém tivesse disparado algo assim em solo europeu, a resposta se tornou evidente: aquela cegonha havia percorrido mais de 3.000 quilômetros desde o ponto na África onde passou o inverno até ser abatida na Alemanha.

Batizada de Pfeilstorch, ela foi empalhada e é preservada até hoje em perfeito estado na Coleção Zoológica da Universidade de Rostock, graças à sua importância inegável para a ciência e a ornitologia: foi a confirmação das suspeitas de que, de fato, as aves migratórias não se transformavam em outras espécies, não hibernavam sob a água e muito menos viajavam para a Lua — elas simplesmente migravam para regiões mais quentes durante o inverno europeu.

Chave

Depois da Pfeilstorch (que significa "cegonha flechada" ou "cegonha atravessada por uma flecha"), outros exemplares com características semelhantes foram encontrados na Europa: aves com flechas cravadas em alguma parte do corpo. Isso não é tão incomum em aves grandes, que demonstram uma incrível resiliência diante de ferimentos que não comprometem o voo ou suas funções básicas.

Uma vez feridas, se o machucado não for grave, a lesão se estabiliza e a ave consegue seguir com sua vida.

Com a introdução das anilhas nas patas das aves pelo dinamarquês H.C. Mortensen, em 1899, os pesquisadores passaram a sistematizar o estudo dos espécimes para comprovar que aquelas aves que partiam da Europa antes do inverno, desapareciam e depois retornavam, eram, de fato, os mesmos indivíduos.

Assim, podemos dizer que aquela flecha lançada na África e que atravessou uma cegonha na Alemanha foi o primeiro sistema de rastreamento de aves — uma coincidência que permitiu obter os primeiros dados conclusivos sobre as práticas migratórias das aves.

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