Seul é a sexta maior economia entre metrópoles do mundo, atrás apenas de Paris, São Francisco, Tóquio, Nova York e Los Angeles: uma megalópole de 25 milhões de habitantes que, às margens do rio Han, tornou-se o coração de uma das potências tecnológicas, culturais e econômicas mais sofisticadas do mundo.
É a modernidade transformada em cidade. Tanto que muitos chamam Seul de "milagre". Um milagre que, se olharmos de perto, está cheio de defeitos. E a melhor forma de enxergar isso é, curiosamente, por meio da mais recente ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura, a sul-coreana Han Kang.
"Uma mulher sem graça"
"Antes de minha esposa se tornar vegetariana, nunca pensei que ela fosse uma pessoa especial [...] Se me casei com ela, foi porque, assim como não parecia ter nenhum atrativo especial, também não parecia ter nenhum defeito em particular. Sua maneira de ser, sóbria e sem qualquer traço de frescor, inteligência ou elegância, me fazia sentir à vontade."
Assim começa A Vegetariana, o romance mais conhecido de Han Kang. É a história de uma mulher "normal", a protagonista Yeong-hye, que decide se tornar vegetariana na Seul contemporânea. Pode parecer algo trivial, mas essa pequena decisão faz explodir todo o mundo social ao seu redor. E não, não é uma maneira de falar: sem entrar em muitos spoilers, além dos insultos e do escândalo do marido, o pai da protagonista chega a agredi-la na tentativa de forçá-la a comer um pedaço de carne.
Lendo o livro daqui do Ocidente, a reação pode parecer exagerada, mas a Coreia do Sul é um lugar difícil.
O pesadelo que convive com o milagre
Em meio a uma grave crise demográfica, a Coreia do Sul é o país da OCDE com mais suicídios, o maior consumo de álcool per capita e um lugar onde 3% de sua juventude vive trancada em seus quartos.
Ser criança é difícil, mas ser mulher é muito pior: as estatísticas nos dizem que até 80% delas são assediadas no trabalho e a desigualdade de gênero está em 32%. Em termos de igualdade salarial, a Coreia ocupa o 105º lugar entre 146 países. Em 2019, um movimento feminista chamado 4B deu um golpe na mesa e começou a trazer todos esses temas à tona. O livro de Han Kang saiu 15 anos antes.
Enquanto o movimento 4B se baseia em quatro negações fundamentais ("Não ao casamento heterossexual, não ao parto e criação de filhos, não a encontros com homens e não a relações heterossexuais"), a negação de Yeong-hye é muito mais sutil: ela simplesmente se recusa a comer carne. Em um lugar onde a carne, no entanto, é algo mais que apenas carne.
Pequenas mudanças
Há um monólogo teatral de Tim Crouch em que o protagonista, quando criança, decide que vai manter o braço direito levantado para sempre. Não há motivos claros para isso e, na verdade, pode ser prejudicial para ele: mas isso se torna um propósito vital que o transforma, assim como a todos ao seu redor, para sempre. Crouch é inglês e, embora a peça seja pouco conhecida, nossa cultura compartilhada é suficiente para prever o efeito que essa pequena mudança terá na vida social do garoto.
Para aqueles que a cercam, a decisão de Yeong-hye é tão incompreensível quanto a do personagem de Crouch. Assim como no braço da peça, sua decisão "se torna o objeto inanimado definitivo sobre o qual os outros projetam seus próprios símbolos e significados". As consequências, de fato, são muito piores para a sul-coreana.
Embora eu deva reconhecer que, do Ocidente, as vozes dos narradores de A Vegetariana parecem óbvias e exageradas, quase satíricas, mas é fato que colocam o dedo em uma ferida real. É verdade que Han Kang faz uso de certo "realismo mágico", mas, nas opiniões misóginas da sociedade coreana há, sobretudo, realismo puro e duro. Por isso o livro é tão valioso para entender como, sob o brilho dos neons de Seul, se escondem muitos fantasmas.
Texto traduzido e adaptado do Xataka Espanha
Imagem | librairie mollat/ Ann Danilina
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