Imagine a seguinte situação: você é uma pessoa normal que trabalha, paga suas contas, sai com sua família para passear, se diverte com os amigos, etc. De repente, algumas situações estranhas passam a acontecer. Começa com pequenas coisas: você perde a chave do carro que acabou de guardar, esquece de dar comida para o cachorro, guarda o pote de sal na geladeira.
Mas depois, vai ficando pior: você esquece nomes e endereços. Perde compromissos que nem consegue lembrar que agendou. Não consegue dizer o que comeu no almoço. A situação começa a ficar preocupante e você procura um médico. O diagnóstico logo chega: primeiros estágios de Alzheimer, uma doença sem cura.
O médico, então, te dá uma escolha: iniciar um tratamento medicamentoso, que tem apenas a função de retardar o progresso da doença, e continuar vivendo até se esquecer de tudo e de todos, provavelmente alocado em uma casa de repouso. Ou, então, experimentar uma novidade: implantar um chip em seu cérebro, patenteado por uma empresa privada, que enviará estímulos elétricos diretamente ao órgão e supostamente restaurará funções perdidas, incluindo o movimento e a comunicação.
Pode parecer loucura, mas é exatamente isso que a Neuralink, empresa de Elon Musk, está fazendo. E ela já tem três cobaias.
O que é a Neuralink?
A Neuralink foi criada em 2016 e tem Elon Musk como co-fundador e principal acionista. Seu objetivo é desenvolver interfaces cérebro-computador (BCIs, na sigla em inglês) para conectar o cérebro humano diretamente a dispositivos eletrônicos. As promessas são muitas, sendo que a principal é ajudar no tratamento de pessoas com doenças como paralisia, Alzheimer, Parkinson, lesões medulares e similares.
Mas as ambições futuras de Musk incluem permitir uma interface direta entre nossos cérebros e dispositivos eletrônicos e também integrar mais facilmente nossa consciência com a inteligência artificial. Existem até conversas sobre o aprimoramento das funções humanas por meio do auxílio dos BCIs, o que nos tornaria, efetivamente, ciborgues.
“Sei que está soando como um episódio de Black Mirror, mas tudo que está gravado na memória você poderia fazer upload. Você poderia guardar suas memórias como um backup e depois restaurá-las. E, eventualmente, você poderia baixá-las em um novo corpo ou no corpo de um robô. O futuro vai ser estranho”, afirmou Elon Musk.
E Musk ainda vai além. O executivo sugeriu que os primeiros produtos da Neuralink incluirão "telepatia", que permitirá aos usuários controlar um telefone ou computador "apenas pensando", além de recursos que poderão restaurar a visão de pessoas cegas.
Por lidar com algo que está no futuro, a empresa depende de constantes rodadas de financiamento. Mas os negócios vão bem: em 2022, seu valor era estimado em cerca de 2 bilhões de dólares (R$ 12 bilhões). Em 2023, subiu para mais de 7 bilhões (R$ 42 bilhões) e, em 2024, foi para 8 bilhões (R$ 45,5 bilhões).
Ainda não é nada em comparação à SpaceX, por exemplo, que vale US$ 232 bilhões (R$ 1,3 trilhão), mas a Neuralink é um projeto a longo prazo.
O caso de Noland Arbaugh
Em janeiro de 2024, aos 30 anos de idade, o estadunidense Noland Arbaugh se tornou a primeira pessoa a receber o dispositivo da Neuralink que permite controlar um computador por meio do pensamento. Ele ficou tetraplégico após um acidente de natação em 2016, que o deixou sem movimento abaixo dos ombros.
O chip da Neuralink permite que ele controle um computador com a mente. Ele faz isso detectando os pequenos impulsos elétricos gerados pelos pensamentos do homem e traduzindo-os em comandos digitais, como mover o cursor na tela.
Em uma entrevista recente à BBC, Arbaugh disse que, quando acordou da cirurgia que implantou o dispositivo, já conseguiu controlar o cursor na tela apenas pensando em mover os dedos. Com o tempo, sua habilidade de usar o implante foi melhorando e ele agora consegue até mesmo jogar xadrez e videogames. "Honestamente, eu não sabia o que esperar — parecia algo de ficção científica", disse ele.
A tecnologia, entretanto, ainda é muito nova e sujeita a falhas. Em maio de 2024, cerca de quatro meses após a implantação, 85% dos fios do chip de Arbaugh se desconectaram do cérebro, o que comprometeu sua funcionalidade. A Neuralink constatou que aproximadamente 54 dos 64 fios se soltaram, o que impactou a precisão e a latência do dispositivo. Para evitar a necessidade de uma nova cirurgia, a Neuralink reprogramou o chip para funcionar utilizando apenas os fios que restaram.
Arbaugh afirmou na entrevista que está ciente dos riscos envolvidos, mas que está empolgado em estar contribuindo para a pesquisa. "Se tudo der certo, então poderei ajudar sendo um participante da Neuralink. Se algo terrível acontecer, sei que eles aprenderão com isso", disse ele. O paciente também afirmou que espera que o dispositivo, eventualmente, permita que ele controle sua cadeira de rodas ou até mesmo um robô humanoide futurista.
A Neuralink atualmente tem dois estudos em andamento nos EUA para seus dispositivos. O primeiro deles, chamado de Estudo Prime, projetado para cerca de cinco voluntários, permite que pacientes paralisados controlem dispositivos externos, como computadores ou smartphones, com a mente. É o caso de Arbaugh. Já o segundo estudo, o Convoy, é projetado para três pacientes e permite que eles controlem dispositivos como braços robóticos.
Em janeiro de 2025, Elon Musk revelou que a Neuralink já instalou o chip em outros dois pacientes além de Arbaugh. O segundo paciente, segundo Musk, já consegue até mesmo jogar Counter-Strike.
Como funciona
O chip é instalado por uma máquina robótica que se assemelha, a grosso modo, a um secador de salão de cabeleireiro. A cirurgia não requer anestesia, dura menos de uma hora e o paciente tem alta no mesmo dia. “Você remove um pedaço do crânio do tamanho de uma moeda e pode sair andando depois”, disse Musk ao revelar o dispositivo.


Os fios que conectam o chip à massa cerebral possuem cerca de 1/20 do diâmetro do cabelo humano. Eles ficam em contato com os neurônios no cérebro para receber e enviar sinais. Segundo a Neuralink, o processo não causa nenhum tipo de dano ao órgão. “Você pensa que, se espetar algo com um fio, com certeza vai sangrar, mas, numa escala tão pequena, isso não acontece”, disse Musk.
A bateria do chip dura o dia todo, é carregada sem fio e se conecta via Bluetooth ao seu celular, com o sinal podendo alcançar até 10 metros de distância. No futuro, a ideia de Musk é que o procedimento tenha um preço acessível para que várias pessoas possam fazer uso.

Nem todo mundo enxerga com bons olhos
A comunidade científica tem demonstrado preocupações com as notícias divulgadas pela Neuralink. Alguns cientistas apontam que o modo da empresa de divulgar suas descobertas — por meio de conferências e posts nas redes sociais — vai contra o método científico, que inclui a revisão por pares e o detalhamento dos experimentos em artigos publicados em periódicos. Esse tipo de abordagem impede que outros cientistas verifiquem a veracidade das afirmações divulgadas e também que façam outros estudos a partir do que foi observado.
Até agora, o único artigo científico produzido pela Neuralink foi publicado em um periódico sem relação com o campo da engenharia neural e com Elon Musk como um dos autores.
Outra polêmica é em relação a Arbaugh. A escolha dele como participante levanta muitas dúvidas porque a ética médica exige que os pacientes sejam adequadamente informados sobre a pesquisa (o que não está acontecendo, já que não há divulgação científica tradicional), que a seleção dos voluntários seja justa (e Arbaugh pode ter sido escolhido apenas por ser fã de Musk), que os voluntários possam se retirar da pesquisa a qualquer momento (como fazer isso com um chip no cérebro?) e que as empresas envolvidas se comprometam a não ferir os pacientes, algo que, argumenta-se, a Neuralink ainda não pode garantir. O que acontecerá, por exemplo, quando o chip de Arbaugh se tornar obsoleto?
Por fim, outra grande preocupação é sobre a coleta irrestrita de dados que poderá ser feita por esses chips. Existe um temor de que os dados pessoais de cada voluntário possam ser armazenados inadequadamente, de modo a estarem sujeitos a invasões e vazamentos. Além disso, teme-se que a liberdade pessoal de cada participante seja tolhida, uma vez que ter um chip monitorando sua vida possa gerar alterações de comportamento. E, é claro, existe a possibilidade de que a Neuralink e outras empresas do setor usem os dados pessoais de seus pacientes para o lucro.
Ainda não é certo o que vai acontecer com a Neuralink e se suas ambiciosas pretensões irão se concretizar. Mas é seguro dizer que Musk está confiante nos resultados e que, em breve, veremos mais notícias sobre avanços realizados pela companhia. Se vai ser para o bem ou para o mal, só o tempo dirá.
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