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A recompensa da Rússia pelo alistamento na guerra da Ucrânia mudou a idade de seus soldados: homens na faixa dos 60 e 70 anos

Após três anos de conflito, os números mostram um esgotamento de recursos humanos jovens e qualificados na Rússia

Rússia dá prêmios em dinheiro para famílias de idosos que se alistarem para lutar na guerra / Imagens: Ministry of Defense, RawPixel, Mstyslav Chernov
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Victor Bianchin

Redator

Victor Bianchin é jornalista.

Nas guerras, o número de baixas costuma ser maior do que o reconhecido oficialmente, mas qual é a diferença entre os dados? Há alguns dias, a BBC e a Mediazona lideraram uma ampla análise sobre o número de soldados russos mortos no conflito na Ucrânia. Paralelamente, outro estudo pioneiro, baseado em ferramentas de inteligência artificial, fez a mesma análise e apresentou números muito semelhantes. Ambas as pesquisas revelaram o óbvio: três anos de guerra resultam em milhares de mortes — mas também mostraram como as forças mudam com o tempo.

O Financial Times relata uma realidade que parece uma distopia. À medida que a guerra na Ucrânia avança para o seu terceiro ano, a Rússia tem modificado a composição de seu exército, recorrendo cada vez mais a homens com mais de 50 anos, a maioria deles na faixa dos 60 e 70 anos.

Essa mudança responde à necessidade do Kremlin de repor tropas sem recorrer a uma nova mobilização em massa, uma medida impopular entre a população. Em vez disso, o governo optou por recrutar "voluntários" por meio de incentivos financeiros substanciais e de uma intensa propaganda televisiva que exalta o patriotismo e a necessidade de defender a nação. O veículo apresentou exemplos, como o caso de Yuri Bushkovsky, que teria completado 70 anos em 2024 e morreu na linha de frente na Ucrânia em novembro. Sua história é apenas uma entre milhares de veteranos e cidadãos idosos que foram persuadidos a se alistar com promessas de estabilidade econômica para suas famílias.

O impacto das baixas

Como mencionamos no início, a análise da Mediazona, em colaboração com a BBC e outros veículos, reuniu informações sobre quase 100.000 soldados russos mortos no conflito. Paralelamente, outro estudo, conduzido pela iStories e baseado em ferramentas de inteligência artificial, chegou a uma estimativa semelhante, identificando mais de 104.000 nomes. É um número muito alto, embora especialistas estimem que o total real de baixas possa ser significativamente maior.

Os dados dos dois estudos mostram que, na primeira fase da invasão, a maioria das tropas pertencia ao exército regular, incluindo soldados de unidades de elite enviadas para tomar Kiev em questão de dias. No entanto, após a mobilização de 300.000 reservistas em 2022, os mortos passaram a incluir um número crescente de soldados sem treinamento formal.

No início de 2023, combatentes de grupos privados, como o Wagner, e prisioneiros recrutados em presídios passaram a dominar as listas de baixas. Agora, no terceiro ano da guerra, a estratégia mudou novamente: o Kremlin depende de contratos militares, com uma participação crescente desses homens mais velhos, que vêem no recrutamento uma solução para problemas financeiros ou legais.

Guerra na Ucrânia

Motivações e o “prêmio”

O recrutamento de homens mais velhos acontece por múltiplos fatores. Alguns possuem experiência militar prévia em conflitos anteriores, enquanto outros enfrentam dificuldades econômicas que os levam a se alistar em troca de bonificações de até 4 milhões de rublos (R$ 270 mil) e salários anuais que podem ultrapassar 7 milhões de rublos (R$ 456 mil). Para muitos, essa quantia representa uma oportunidade de transformar a vida de suas famílias, possibilitando a compra de uma casa ou a educação dos filhos. Há soldados que "valem" mais mortos do que vivos em suas regiões.

O sociólogo Kirill Rogov descreveu esse fenômeno como um "salto social" para as famílias dos recrutas: em muitos casos, trata-se de uma decisão tomada em conjunto com seus familiares, que enxergam no dinheiro uma oportunidade única em um contexto de crise econômica. No entanto, o custo humano dessa estratégia é evidente. Segundo os dados da Mediazona, mais de 4.000 soldados russos contratados morreram com mais de 50 anos, um número muito superior aos menos de 500 reservistas e 869 prisioneiros mortos na mesma faixa etária.

E na Ucrânia?

Em contraste, ambos os estudos mostram que a idade média dos soldados ucranianos é de 43 anos. Apesar da redução da idade mínima para o serviço militar de 27 para 25 anos em 2023, o governo da Ucrânia tem evitado medidas mais drásticas para não comprometer o futuro de sua população. Já na Rússia, o envelhecimento do exército parece ser uma tendência crescente, o que levanta dúvidas sobre a sustentabilidade do esforço de guerra a longo prazo.

Quanto ao incentivo econômico, ele varia conforme a região. Em locais como Samara, o pagamento pelo alistamento está entre os mais altos, chegando a 4 milhões de rublos (R$ 270 mil), enquanto o salário mensal médio na região é de 66.000 rublos (R$ 4,4 mil). Esse contraste reforça o apelo do recrutamento para aqueles que enfrentam dificuldades financeiras. Em algumas regiões, a bonificação inicial é suficiente para cobrir o custo de um apartamento de um quarto, tornando a oferta ainda mais tentadora para famílias de baixa renda.

Uma guerra invisível

Ambos os relatórios destacam que, apesar das perdas catastróficas no front, a sociedade russa continua amplamente desconectada do verdadeiro custo da guerra. Apenas 30% dos russos tiveram contato direto com o conflito, seja lutando ou tendo familiares no combate. Na Ucrânia, por outro lado, quase 80% da população conhece alguém que morreu ou ficou ferido na guerra.

A ausência de informações oficiais e a censura reforçam esse desconhecimento. Na Rússia, os dados sobre baixas militares são classificados como segredo de Estado, enquanto na Ucrânia, as listas de soldados mortos continuam acessíveis ao público. Isso faz com que o impacto emocional do conflito seja muito diferente em ambas as sociedades.

Um estudo da PROPA, em colaboração com a Universidade de Helsinque, revelou que 43% dos russos ainda apoiam a invasão. No entanto, especialistas como o sociólogo Viktor Vakhshtayn acreditam que esse sentimento mudaria drasticamente se mais cidadãos fossem pessoalmente afetados pelas perdas.

O problema da recuperação dos corpos

Esse é o último aspecto a ser tratado nessa “guerra” de números. Um fator-chave na subestimação das baixas russas é a dificuldade de recuperar cadáveres. Muitos corpos permanecem no campo de batalha, pois as tropas evitam se expor a ataques de drones para resgatar seus companheiros caídos. Desde setembro de 2024, os registros de mortes aumentaram drasticamente, em parte porque as famílias russas começaram a documentar as perdas por conta própria. À medida que o conflito avança, é provável que os dados de fontes independentes continuem desempenhando um papel crucial para revelar a magnitude da catástrofe humana.

Em suma, o uso de soldados mais velhos no exército russo reflete tanto a necessidade do Kremlin de evitar uma nova mobilização quanto o impacto da crise econômica sobre a população.

Imagem | Ministry of Defense, RawPixel, Mstyslav Chernov

Este texto foi traduzido/adaptado do site Xataka Espanha.

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