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Na Idade Média, havia uma moda culinária muito cara que hoje tornaria a comida intragável: encher de temperos

Nos grandes banquetes, não economizavam em especiarias e há duas razões bem simples para isso: paladar e status

As classes mais altas da Idade Média eram loucas por temperos / Imagem: Wikipedia
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Victor Bianchin

Redator

Victor Bianchin é jornalista.

Se você fosse o convidado de um senhor feudal da Idade Média, um conde ou barão abastado que queria impressionar seus comensais com um opulento banquete à base de peixes, carnes, vinhos e doces, o melhor era que seus gostos se inclinassem para a comida megatemperada. Afinal, não seria surpreendente que, à mesa, você encontrasse uma travessa de faisão nadando em um molho feito com 17 especiarias diferentes — uma mistureba cujo sabor dificilmente agradaria aos paladares de hoje.

Talvez essa ideia pareça pouco apetitosa, mas, para os comensais da Idade Média, fazia todo o sentido.

Melhor com especiarias

Os comensais endinheirados da Idade Média gostavam de especiarias. Muito. Tanto que seus banquetes eram um verdadeiro espetáculo de temperos como gengibre, canela, pimenta preta, noz-moscada e açafrão, entre outros bem condimentados. Como exemplo, Michael Delahoyde, da Universidade Estadual de Washington, explica que um molho para carnes podia conter até 17 especiarias diferentes. Em outra reportagem recente, o jornal El País falava de receitas com até 15 e muito açúcar.

Tudo ia no mesmo prato, combinado, formando uma mistura de sabores que faria com que as comidas que adornavam os grandes banquetes dos nobres medievais dificilmente fossem comestíveis para as pessoas de hoje. E isso (ironia culinária) sendo que nunca foi tão fácil encontrar especiarias como nos dias atuais: basta entrar em qualquer supermercado e se deparar com prateleiras cheias.

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Uma janela gastronômica

Se sabemos o que e como comiam os nobres medievais, isso se deve ao trabalho dos historiadores e a obras como O Livro de Sent Soví, um manuscrito que se destaca por várias razões: é o livro de receitas mais antigo de seu tipo na península ibérica. A obra contém 72 receitas e data do século 15, embora os especialistas estejam convencidos de que foi criada a partir de um original anterior, agora perdido, que teria sido escrito em 1324.

A obra é interessante não apenas por suas receitas. Ela também nos fala sobre como eram os comensais da Baixa Idade Média, talvez um pouco diferentes de nós em gostos, mas não naquilo que diz respeito à atitude. Além de apreciar o sabor dos pratos, gostavam de se exibir, usando a gastronomia como um símbolo de status. Apreciavam as cozinhas com grandes fogões, os talheres que cortavam e distribuíam a carne entre os comensais, as especiarias e o açúcar.

Cozinha e marketing (medieval)

"Todos temos que comer todos os dias, mas, na Idade Média, não tinham as formas de se distinguir que temos hoje. Eles transformavam a comida em uma liturgia, um ritual no qual demonstravam sua riqueza e que se via até fora, porque davam as sobras às classes mais pobres. Era uma forma de demonstrar status", comenta ao El País Juan Vicente García Marsilla, catedrático de História Medieval e comissário de uma exposição sobre o tema na Espanha.

O próprio livro de receitas do século 15 tem muito dessa pompa e prestígio que se buscava entre fogões e despensas. Em seu prólogo, é mencionado que a obra original foi elaborada por encomenda de um rei inglês, mas as receitas falam de outra realidade: um autor provavelmente valenciano ou catalão, habituado à tradição gastronômica do Mediterrâneo. "Ínfulas de marketing da época", resume García. Ao atribuir a obra a um chef estrangeiro e antigo, o livro de receitas buscava se impregnar de exotismo e prestígio.

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Por que tantas especiarias?

Em parte, pela razão acima: status. Hoje, talvez as encontremos em qualquer mercadão, mas, séculos atrás, as especiarias ou o açúcar eram luxos que não estavam ao alcance de todas as mesas. "As especiarias eram um sinal de luxo e opulência. Denotavam prestígio", comenta Delahoyde, que reflete sobre o valor peculiar dos livros de cozinha medievais: provavelmente nem todos os cozinheiros sabiam ler e os livros de receitas não eram usados entre os fogões, mas sim conservados em coleções privadas.

Portanto… Serviam para os responsáveis pelas provisões? Eram um sinal de status? Uma forma de conhecer os ingredientes exóticos de cada prato, temperos que, de outra forma, talvez passassem despercebidos pelos comensais?

Em busca de sabores… e nome

Analida Braeger faz algumas reflexões interessantes em Medievalist.net, uma plataforma fundada em 2008 e especializada em história medieval. Em um extenso artigo sobre o tema, ela aponta que o paladar medieval se acostumou a alimentos muito temperados com especiarias, um símbolo de poder acentuado, em parte, pela sua procedência exótica e pelas importações do Oriente. Na extensa lista estavam canela, cravo, noz-moscada, gengibre, pimenta, açafrão, macis, cardamomo e galanga.

"A insaciável demanda de especiarias por parte da Europa no final da Idade Média é um exemplo notável de uma mudança histórica drástica provocada pelas preferências dos consumidores", apontou em 2012 Paul Freedman em um artigo publicado no The Oxford Handbook of Food History. O resultado são receitas como o frango com açúcar que podemos ler no manuscrito do século 15. Além disso, as especiarias não eram usadas apenas na culinária, mas também tinham aplicações médicas.

Há quem afirme que, apesar da sua disponibilidade limitada e alto custo, um percentual muito elevado das receitas dos livros de cozinha dos séculos 8, 9 e 15 incluem especiarias, e que pelo menos algumas obras citam até 40 tipos diferentes. De qualquer forma, é preciso deixar claro que não é a mesma coisa a culinária da aristocracia e a praticada pelas classes populares. Entre essas últimas, não era incomum o consumo de comida fria, por uma questão de custos.

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Revisando velhos estereótipos

Como acontece frequentemente com tudo o que se refere à Idade Média, o uso das especiarias está obscurecido por estereótipos e preconceitos que nem sempre são precisos. Delahoyde lembra o "mito comum" de que os cozinheiros da época usavam tantos temperos para mascarar o sabor da carne estragada. Afinal, não havia geladeiras nem congeladores para manter a carne fresca, certo? Por que não temperá-la bem?

Não é provável que isso tenha acontecido. E a razão é simples. Na Idade Média, as pessoas também estavam cientes da importância dos alimentos frescos e quem tinha os recursos necessários para comprar especiarias provavelmente não as usaria para esse fim. Primeiro, porque eram caras demais para desperdiçá-las com carne podre. Segundo, porque não seria absurdo pensar que, se um aristocrata podia ter cravo ou galanga em sua despensa, provavelmente teria também carne fresca.

Uma forma de conservar a comida? Outro estereótipo comum é o de que as especiarias eram usadas para conservar os alimentos, mas Delahoyde insiste: "Os medievais não eram idiotas". Não faria sentido usá-las para esse fim quando a carne ou o peixe podiam ser conservados em salmoura ou com a ajuda de vinagre, açúcar e mel. O especialista lembra um dado: as especiarias pareceram perder força na culinária por volta do século 17, muito antes de se inventarem as geladeiras. A carne e o peixe deixaram de estragar? Ou simplesmente os gostos mudaram?

Imagens| Wikipedia 1, 2, 3 e 4

Este texto foi traduzido/adaptado do site Xataka Espanha.

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