A Europa passou décadas sem nenhum conflito armado direto em seu território, com exceção das guerras na Iugoslávia nos anos 90, o último grande episódio de violência em solo europeu. Desde então, a segurança no continente tem sido pautada por uma estratégia baseada mais na dissuasão e na diplomacia do que no confronto militar. E, de repente, o conflito na Ucrânia lembrou que fogos de artifício não são o mesmo que fogo real.
A Europa antes da Ucrânia
Como mencionado, as forças armadas europeias há tempos estão em reserva. Em sua maioria, foram reduzidas e adaptadas a um contexto de estabilidade, com investimentos limitados em defesa e um foco em operações de manutenção da paz e assistência humanitária, como as missões nos Bálcãs, na África e no Oriente Médio.
Apesar do crescimento da OTAN e de sua presença no Leste Europeu, os exércitos europeus estiveram mais acostumados a atuar em cenários controlados do que a se preparar para um confronto direto contra um adversário de peso como a Rússia.
Esse enfoque levou muitos países europeus a conduzirem operações militares que são, em grande parte, exercícios, manobras conjuntas e simulações em países aliados como Eslováquia, Polônia e Letônia, mas sem a experiência real de um combate convencional contra uma potência militar. E não é a mesma coisa deslocar tropas para um exercício nos países bálticos e enfrentar em batalha uma força como o exército russo.
Entrar na guerra
No final de fevereiro, vários líderes europeus se reuniram em Paris para discutir a possibilidade de enviar tropas à Ucrânia como parte de um possível acordo de paz, embora a viabilidade dessa medida dependa em grande parte do apoio dos Estados Unidos. Na verdade, a cúpula foi impulsionada pela decisão do governo Trump de excluir a Europa das negociações iniciadas na Arábia Saudita entre Washington e Moscou, embora Trump tenha sugerido que os europeus poderiam desempenhar "um papel de manutenção da paz".
Foi então que a Europa parece ter percebido que negligenciou sua defesa. Segundo o The Washington Post, alguns países europeus consideram o envio de até 30.000 soldados que, no entanto, não estariam na linha de frente, mas atuariam como uma força de dissuasão em caso de retomada do conflito. Outra opção, ou plano B, seria a chamada "força de reassentamento", destinada a proteger a Ucrânia de futuros ataques russos caso um acordo de paz negociado pelos Estados Unidos seja alcançado.
Dito isso, a França é o país com os planos mais avançados, estimando que poderia enviar quase 10.000 soldados, enquanto o Reino Unido, por meio do primeiro-ministro Keir Starmer, abriu a possibilidade de uma contribuição britânica.
E é aí que a discussão estanca, pois o restante dos países adotou uma postura mais ambígua. Suécia e Países Baixos, por exemplo, não descartam o envio de tropas, mas ainda não tomaram uma decisão concreta. Alemanha, Polônia e Espanha rejeitaram a ideia, pelo menos por enquanto. O chanceler Olaf Scholz enfatizou que qualquer solução deve se basear em uma força ucraniana forte, enquanto Donald Tusk, primeiro-ministro da Polônia, afirmou que Varsóvia "não cogita enviar soldados poloneses para a Ucrânia". Já o governo espanhol foi categórico ao afirmar que a paz ainda está distante e depende exclusivamente de Putin, deixando claro que qualquer missão militar precisaria definir objetivos, participantes, mandato e liderança.
Objetivos estratégicos
Caso o “plano B” se concretize, com um acordo de paz em andamento, a principal missão dessa eventual “força de reassentamento” seria garantir a segurança do espaço aéreo ucraniano, permitindo a reabertura de voos comerciais, e proteger o comércio marítimo no Mar Negro, essencial para as exportações de grãos e outros bens fundamentais para a economia ucraniana.
Também seria priorizada a proteção de infraestruturas-chave, como usinas de energia e serviços públicos, que têm sido alvos constantes de bombardeios russos desde o início da guerra.
Enquanto isso, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky argumenta que a segurança da Ucrânia não exige necessariamente tropas estrangeiras em seu território. Ele propôs a criação das "Forças Armadas da Europa", capazes de responder em terra, mar, ar e com inteligência artificial a qualquer agressão russa. Também destacou que sistemas de defesa aérea e armamento avançado seriam medidas eficazes para fortalecer a segurança sem a necessidade de tropas estrangeiras permanentes.

O elefante na sala
Sem dúvida, o plano da Europa enfrenta obstáculos diplomáticos importantes. O primeiro de todos é o apoio dos Estados Unidos, que é, neste momento, incerto. Embora a administração Trump tenha insistido que as tropas europeias devem garantir a segurança de um futuro acordo de paz, o secretário de Defesa, Pete Hegseth, deixou claro que elas devem fazer parte de uma missão não relacionada à OTAN e não estarem protegidas pelo Artigo 5 de defesa mútua.
Mesmo no incerto cenário de um acordo de paz, a missão e o papel da Europa exigiriam um "backstop" (suporte) dos Estados Unidos, ou seja, um respaldo dos EUA em caso de uma escalada militar. Embora não haja detalhes específicos, espera-se que esse apoio se concentre no poder aéreo, com operações baseadas na Polônia e na Romênia. A esse respeito, Starmer e Macron viajarão a Washington no fim fevereiro para pressionar Trump e garantir que os Estados Unidos forneçam esse respaldo estratégico.
Defesas "antigas"
O que a Europa está demonstrando, no fundo, é uma grande fraqueza em suas defesas, possivelmente enferrujadas. De fato, a primeira-ministra da Dinamarca, Mette Frederiksen, alertou nesta semana na Conferência de Segurança de Munique que a Ucrânia está fabricando armas mais rápido e a um custo menor do que qualquer outro país da Europa. Não é um detalhe irrelevante. A Ucrânia faz isso apesar de estar em guerra, o que evidencia a lentidão do continente em reforçar sua capacidade militar.
Frederiksen pediu para reduzir a burocracia e aumentar a produção de armamentos em colaboração com os Estados Unidos, enfatizando que a Europa não pode mais agir como se estivesse em tempos de paz.

O auge da indústria militar ucraniana
Desde a invasão russa em 2022, a Ucrânia aumentou exponencialmente sua produção de armamentos, fabricando mísseis, obuses e drones em grande escala. Em 2024, 30% do equipamento militar utilizado pela Ucrânia já era de fabricação nacional. Entre janeiro e novembro daquele ano, a Ucrânia produziu 2,5 milhões de projéteis de artilharia e morteiro, enquanto a UE planeja fabricar 2 milhões em todo 2025.
E se falarmos do campo dos drones, Kiev se tornou atualmente líder mundial, com mais de 1,5 milhão de drones de primeira pessoa produzidos em um único ano.
Europa e a produção militar
Assim sendo, enquanto a Ucrânia incrementa sua capacidade bélica, a Europa segue atrasada em produção e gastos militares, algo que foi reconhecido por líderes como Boris Pistorius, ministro da Defesa da Alemanha, e Mark Rutte, secretário-geral da OTAN, que admitiram que os investimentos têm sido insuficientes.
Do outro lado, a Rússia fabrica mais munições em três meses do que a OTAN produz em um ano inteiro, o que coloca a Europa em desvantagem em termos de preparação militar. Países como Lituânia e Estônia anunciaram que aumentarão seus gastos militares para 5% do PIB, superando até mesmo os 4% da Polônia, líder em investimentos dentro da OTAN.
Um futuro bastante incerto
Por tudo isso, a guerra na Ucrânia tem sido um lembrete brutal da necessidade de repensar a defesa europeia, já que a Rússia demonstrou sua capacidade de sustentar um conflito prolongado e de grande escala, e a Ucrânia, ao se defender, tem acompanhado essa capacidade. Apesar do ligeiro aumento nos gastos militares europeus nos últimos anos, o sucesso da Ucrânia evidencia que o velho continente ainda está atrasado na produção de armas, nas reservas de munição e na capacidade logística para sustentar um conflito sem o respaldo dos Estados Unidos, e isso agora é um problema caso Washington se mostre ambíguo.
A Europa busca ser protagonista na linha de frente de uma guerra que começou há três anos. Uma decisão quase a contragosto que gerou uma urgência em se rearmar e se reorganizar, em se adaptar a uma nova realidade geopolítica, embora a realidade seja que, após décadas de relativa paz, ela se depara com a possibilidade de um conflito para o qual nunca esteve preparada.
Imagem | Army Europe, Ministry of Defence
Este texto foi traduzido/adaptado do site Xataka Espanha
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