“Será o padrão mundial”: em 1996 a General Motors tinha o carro elétrico do futuro até decidir fazê-lo desaparecer

  • O GM EV1 foi um unicórnio dos anos 90 no formato de carro elétrico.

  • Estima-se que a GM perdeu cerca de 80.000 dólares (valores do final dos anos 90) por cada unidade vendida.

General Motors tinha o carro elétrico do futuro até decidir fazê-lo desaparecer. Imagem: General Motors, RightBrainPhotography (Rick Rowen) y Plug In America
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Sofia Bedeschi

Redatora

Jornalista com mais de 5 anos de experiência no ramo digital. Entusiasta pela cultura pop, games e claro: tecnologia, principalmente com novas experiências incluídas na rotina. 

"Quando tudo aconteceu, simplesmente ficamos lá e dissemos: o que eles estão fazendo? Ver esses carros serem destruídos antes que a maioria das pessoas pudesse dirigi-los foi muito impactante para nós."

Essas são as palavras de Chris Paine, diretor do documentário Who Killed the Electric Car?, que conta a história do nascimento, crescimento e morte do GM EV1, o primeiro carro elétrico da General Motors lançado no final do século XX. Um veículo que a própria empresa decidiu eliminar.

O documentário busca uma explicação para a curta vida do GM EV1, um carro elétrico do qual foram produzidas cerca de 1.000 unidades, em uma época em que a mobilidade elétrica ainda engatinhava. A General Motors, no entanto, fez questão de recuperar cada uma dessas unidades com uma ordem clara: enviá-las para o desmonte e acabar com elas.

Por sorte, algumas sobreviveram.

Mais ou menos.

Uma década antes do Tesla Roadster

O Tesla Roadster costuma ser citado como o primeiro grande carro elétrico. No entanto, o esportivo conversível que conquistou Hollywood chegou às ruas uma década depois das primeiras unidades do GM EV1 serem lançadas pela General Motors – e cinco anos após a montadora tentar apagá-lo da história sem deixar vestígios.

Para entender por que a General Motors lançou um carro elétrico em meados dos anos 90, é preciso olhar para o que acontecia naquela época.

A Califórnia, que sempre foi o epicentro dos carros elétricos nos Estados Unidos, aprovou uma série de regulamentações radicais com o objetivo de reduzir a poluição e obrigar as montadoras a introduzirem veículos elétricos no mercado.

"É uma estratégia muito radical, mas é uma que olha para o próximo século. Ela estabelecerá o padrão para as estratégias de qualidade do ar, não apenas neste estado ou nesta nação, mas no mundo", afirmou Brian Bilbray, então membro da Junta de Recursos do Ar da Califórnia, em declarações registradas pela NPR.

Com essas palavras, ele explicava por que a Califórnia aprovou o California Air Resources Board, uma regulamentação que exigia que as montadoras registrassem pelo menos 2% de seus veículos vendidos no estado como carros elétricos. Era 1998, e dessa regulamentação nasceu uma colaboração entre a Tesla e a Toyota, que acabou salvando a empresa de Elon Musk.

O objetivo principal era que as vendas de carros elétricos crescessem rapidamente. Para 2001, a meta era que 5% dos veículos vendidos fossem elétricos, e para 2003, a exigência subia para 10%. No entanto, essas obrigações nunca chegaram a ser cumpridas.

Ainda assim, a regulamentação estava em vigor e parecia firme, o que levou a General Motors a agir. Era hora de lançar um carro elétrico no mercado e testar o real interesse do público. Em 1992, um repórter da NPR já visitava as instalações da montadora para testar um protótipo do veículo, que seria lançado quatro anos depois.

As primeiras unidades chegam ao mercado

O GM EV1 chegou ao mercado em 1996.

O carro era impressionante para a época. Seu design, semelhante a uma gota d’água ou a um ovo, foi projetado para alcançar a máxima eficiência aerodinâmica. As rodas traseiras eram parcialmente cobertas para reduzir ainda mais o consumo de energia – um truque aerodinâmico que também foi usado em outros veículos eficientes, como o Volkswagen XL1.

Naquele momento, os primeiros testes surpreenderam a imprensa. "Você gira a chave e acha que nada acontece. Mas ao pisar no acelerador, ele dá um súbito impulso e, com um chiado, dispara para 5, 15, 30, 45 mph", relatou um jornalista da NPR que teve a oportunidade de testar as primeiras unidades.

Quando chegou ao mercado, o GM EV1 era um carro elétrico com uma autonomia de aproximadamente 112 quilômetros, oferecendo uma agilidade que surpreendia quem o dirigia.

Os testadores ficavam tão impressionados com seu desempenho quanto com as explicações dos engenheiros: "Quando você pisa no pedal do freio, basicamente está recarregando a bateria", destacavam, referindo-se ao sistema de frenagem regenerativa – uma tecnologia que hoje é comum, mas na época parecia revolucionária.

Fonte: Plug In America Fonte: Plug In America

O repórter da NPR não foi o único a ter dificuldade em assimilar o que estava acontecendo. Angus MacKenzie, da MotorTrend, relembrou sua experiência ao dirigir o GM EV1 pela primeira vez: "Você toca o pedal do acelerador e o carro dispara. Simples assim. Sem espera. Sem demora. E o mais estranho de tudo: não há barulho."

O que ele definiu como "o carro mais avançado de sua época" parecia uma ideia revolucionária naquele momento. Especialmente porque a própria GM o vendia como um carro pensado exclusivamente para dirigir – sem esperas, sem idas ao posto de gasolina, sem preocupações com manutenção. MacKenzie registrou as palavras dos engenheiros da montadora na época:

"Não há trocas de óleo. Nada disso. Então, se você quer um carro que realmente represente uma economia de tempo, este é o carro certo. Você o usa para percorrer distâncias curtas e não precisa se preocupar com ele. Basta chegar em casa à noite, conectá-lo ao carregador e, na manhã seguinte, ele está pronto para rodar. Depois, à noite, você o coloca no carregador de novo. Nunca mais precisará parar em um posto de gasolina. Claro, você não vai dirigi-lo até a casa da tia Martha atravessando dois estados."

O jornalista apontou que o GM EV1 foi projetado para ser vendido por cerca de 30.000 dólares, mas enfrentava um grande desafio: provar que havia um público disposto a investir em um carro que levava 15 horas para carregar completamente em uma tomada doméstica.

No fim, o veículo chegou ao mercado com um preço estimado de 36.000 dólares, mas nunca foi realmente vendido.

Em vez disso, a GM optou por oferecê-lo apenas por meio de leasing – ou seja, os clientes podiam usá-lo por um longo período, mas precisavam devolvê-lo à montadora ao final do contrato.

Na primeira leva, a General Motors colocou 660 unidades do GM EV1 nas ruas. Era 1997, e as incertezas sobre a aplicação da regulamentação californiana já começavam a surgir. Pouco depois, em 1999, a montadora lançou a segunda geração do modelo.

A bateria foi aprimorada e, nas versões mais avançadas, a autonomia chegava a cerca de 200 quilômetros – um número que, hoje, até os carros elétricos mais baratos conseguem alcançar.

Essa segunda geração expandiu seu alcance. Foram fabricadas mais 457 unidades, e para ter acesso ao GM EV1, era necessário pagar um valor mensal entre 349 e 574 dólares. Um custo elevado, mas que garantia a experiência de dirigir um carro verdadeiramente único no mercado.

Fonte: RightBrainPhotography (Rick Rowen) Fonte: RightBrainPhotography (Rick Rowen)

O carro elétrico das conspirações

Mas então as coisas começaram a desandar. Em 2000, a General Motors emitiu um recall e retirou do mercado 450 unidades da primeira geração do GM EV1. A justificativa era um defeito no porto de carregamento, que poderia causar incêndios – já haviam sido registrados 16 incidentes, e a montadora considerou mais seguro recolher os veículos.

Ao mesmo tempo, os fabricantes e a indústria petrolífera começaram a receber boas notícias da Justiça, que suspendeu as regulamentações californianas em 2002 e nos anos seguintes. Antes disso, essas exigências já haviam sido sucessivamente adiadas.

Sem mais a obrigação de comercializar carros elétricos, a General Motors perdeu o interesse pelo GM EV1, que se mostrava extremamente caro para a empresa. Estimava-se que o desenvolvimento da tecnologia e a produção do veículo custavam cerca de 80.000 dólares por unidade – um valor que, sem dúvida, a montadora não estava conseguindo recuperar.

A decisão da empresa foi radical: recuperar todas as unidades do GM EV1 e destruí-las.

Esse movimento gerou inúmeras teorias da conspiração, com muitos apontando que a indústria petrolífera estaria por trás dessa decisão, sabotando um avanço que poderia revolucionar o setor automotivo e reduzir a dependência dos combustíveis fósseis. Para muitos, aquilo parecia o fim das esperanças para os carros elétricos.

No entanto, tudo indica que a General Motors tomou essa decisão de forma deliberada – e, segundo o próprio Elon Musk, de maneira equivocada – para encerrar de vez um projeto extremamente caro para a empresa. Os conhecimentos adquiridos poderiam ser úteis no futuro, mas apenas a muito longo prazo. Por isso, a montadora optou por destruir quase todas as unidades recuperadas, preservando apenas um pequeno número de carros, que foram doados a instituições acadêmicas.

Esse movimento, comparável à lendária história de enterrar milhares de cartuchos de videogame em um deserto, gerou uma onda de protestos. Proprietários do GM EV1 e defensores das leis climáticas da Califórnia se revoltaram ao ver a chance de uma revolução na mobilidade escapando por entre os dedos.

O carinho pelo veículo foi tão grande que, no fim, ele acabou tendo até mesmo o seu próprio funeral.

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