O boom dos novos medicamentos contra a obesidade é incontestável, brutal e sem precedentes. Curiosamente, mesmo se a gente usar adjetivos superlativos, talvez ainda não consigamos compreender a magnitude do fenômeno. O Ozempic e outros medicamentos com o princípio ativo do hormônio GLP-1 estão quebrando as regras do jogo, algo sem paralelo na medicina recente.
Um dos maiores exemplos desse impacto é que, desde 2023, centenas de farmácias nos EUA estão fabricando e comercializando esses medicamentos aproveitando uma brecha legal, sem pagar royalties aos detentores da patente.
2023 foi o ano em que esses fármacos se tornaram um fenômeno de massa. O sucesso foi tão grande e inesperado que, apesar de esses medicamentos existirem há anos, a demanda ultrapassou em muito a oferta. Essa "falta de disponibilidade" criou um enorme gargalo – e, com isso, uma grande oportunidade de negócio.
O que é realmente uma farmácia
Tradicionalmente, as farmácias fabricavam os próprios medicamentos que vendiam. Porém, com o crescimento da indústria farmacêutica no século 20 e o aumento da complexidade da produção de medicamentos, essa prática mudou radicalmente. Hoje, muitas farmácias se tornaram estabelecimentos de varejo, sem a capacidade de produzir nada.
No entanto, isso não significa que elas não possam fabricar medicamentos. Em muitos países, a legislação permite que farmácias fabriquem versões de medicamentos patenteados em certas circunstâncias, como em casos de escassez ou personalização.
Mas é legal? Depende da lei de cada país. Por exemplo, o artigo 61.1 da Lei de Patentes da Espanha especifica que "os direitos conferidos por uma patente não se aplicam à preparação de medicamentos realizada extemporaneamente em farmácias por unidade e com base em uma receita médica, nem aos atos relacionados a esses medicamentos preparados". Nos Estados Unidos, há regulamentações semelhantes que permitem práticas parecidas. Ou seja: as farmácias têm passe livre para fabricar remédio sem precisarem ficar restritas a patentes. Aqui no Brasil, a lei 9.279 de 1996 protege o direito de patente por vinte anos após o registro de invenções, incluindo medicamentos. Após esse período, os remédios passam a ser genéricos e podem ser produzidos por quaisquer laboratórios, como diz a Lei de Genéricos, de 1999.
Nos Estados Unidos, a permissão para produção de medicamentos por farmácias gerou um gigantesco experimento sanitário. Quando laboratórios e grandes redes de farmácias perceberam a oportunidade de utilizar essas fórmulas com maior margem de lucro e disponibilidade, passaram a tirar vantagem dessa brecha legal – embora a lei não tenha sido pensada para esse fim.
Ou seja, um mecanismo regulatório projetado para resolver questões pontuais de padronização de remédios agora está sendo usado como um modo de produzir em massa e comercializar medicamentos patenteados como o Ozempic.
Como destaca Angela Fitch, ex-presidente da Associação de Medicina da Obesidade dos EUA, em entrevista ao Axios: "Nunca fizemos algo assim antes no setor da saúde, certo? Para mim, isso é como um gigantesco experimento científico".
Mudar a legislação?
É óbvio que os grandes laboratórios não iriam deixar sua propriedade intelectual ser usada por terceiros impunemente. A Novo Nordisk, fabricante do Ozempic, não está sozinha. Outras farmacêuticas também estão envolvidas nesse processo e tudo indica que uma batalha legal pode estar por vir, potencialmente transformando todo o funcionamento do setor.
Nesse contexto, grandes corporações agora estão pressionando governos para restringir a legislação que regula as fórmulas desses remédios. Embora essas fórmulas atendam a uma necessidade médica importante para alguns pacientes, elas se encaixam dentro dessa brecha legal, a qual foi flexível o suficiente para permitir a criação de uma indústria inteira fora dos canais normais.
Seria curioso se, justamente agora que a medicina está se tornando mais personalizada, perdêssemos o que é, historicamente, o mecanismo mais personalizável das farmácias.
O problema é que essas restrições teriam implicações na saúde de muitas pessoas que realmente precisam dos remédios, e não apenas dos que querem emagrecer rápido. Poderiam também afetar a capacidade das farmácias de auxiliar em casos de falta de disponibilidade de medicamentos essenciais. Uma vez que esse passo seja dado, ninguém poderá ter certeza do que virá a seguir.
Imagem | Pokey Aardvark
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