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O maior papiro grego já encontrado não era o que parecia; sua tradução revelou uma história desconhecida de Roma

O papiro oferece uma visão fascinante sobre a administração da justiça no Império Romano — e também sobre como Roma lidava com crimes econômicos em uma província turbulenta.

Papiro grego encontrado em Roma. Imagem: Israel Antiquities Authority
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Sofia Bedeschi

Redatora

Jornalista com mais de 5 anos de experiência no ramo digital. Entusiasta pela cultura pop, games e claro: tecnologia, principalmente com novas experiências incluídas na rotina. 

As tábuas e papiros da Antiguidade são cápsulas do tempo que nos mostram, de forma fascinante — e às vezes até em primeira pessoa — um momento específico do passado. Há de tudo: desde o sistema trigonométrico mais antigo do mundo, ou aplicações de geometria mil anos antes de Pitágoras, até histórias e relatos que revelam como era a vida há milhares de anos.

Por isso, quando foi descoberto o papiro grego mais longo do mundo, o mundo ficou em expectativa. Mas, no fim, ele era outra coisa.

Um papiro em Israel, um caso romano

Uma descoberta sem precedentes lançou nova luz sobre o funcionamento do sistema judiciário romano e o combate ao crime financeiro nas províncias orientais do Império. Um time internacional de pesquisadores da Academia de Ciências da Áustria, da Universidade de Viena e da Universidade Hebraica de Jerusalém publicou o estudo de um papiro grego com mais de 133 linhas — o mais extenso já encontrado — localizado no Deserto da Judeia.

O documento, desconhecido até ser redescoberto em 2014, traz o relato direto de um julgamento por fraude fiscal e falsificação de documentos nas províncias romanas da Judeia e da Arábia, uma região marcada por levantes judaicos contra Roma nos séculos I e II d.C.

Como veremos, a vida naquela época… nem era tão diferente da de hoje.

Um testemunho legal da Roma imperial

O papiro, inicialmente classificado de forma equivocada como nabateu, permaneceu esquecido por décadas — até que a professora Hannah Cotton Paltiel percebeu algo.

Ao examiná-lo no laboratório de pergaminhos da Autoridade de Antiguidades de Israel, ela identificou sua verdadeira natureza.

Essa descoberta motivou a formação de uma equipe especializada para analisar o conteúdo do documento, que mais tarde foi confirmado como anotações de procuradores num julgamento perante autoridades romanas, na véspera da revolta de Bar Kokhba (132–136 d.C.).

E não só isso

A linguagem do papiro é surpreendentemente dinâmica, com estratégias processuais e discussões entre os fiscais sobre a solidez das provas apresentadas. 

Trata-se de um caso excepcionalmente bem documentado dentro do contexto jurídico da província da Judeia — comparável, por exemplo, ao processo de Jesus, especialmente em termos de evidência escrita dos procedimentos romanos na região.

Um escândalo de fraude fiscal

Quanto ao conteúdo em si, o caso relatado no papiro envolve dois acusados: Gadalias e Saulos, que operavam uma rede de fraude baseada na venda fictícia e na libertação fraudulenta de escravizados — tudo isso sem pagar os impostos exigidos por Roma.

Gadalias, filho de um notário e possivelmente cidadão romano, tinha um histórico criminal que incluía violência, extorsão e falsificação de documentos.

Já Saulos, seu cúmplice, foi o responsável por arquitetar o esquema de evasão fiscal, usando documentos falsificados para registrar transações que nunca aconteceram.

A punição

Pela lei romana, falsificação e fraude fiscal eram crimes graves, punidos com trabalhos forçados ou até mesmo com a pena de morte. A prisão de Gadalias e Saulos não se deu apenas por seu histórico criminoso, mas também ocorreu num contexto de crescente tensão política.

O caso, de fato, se desenrolou entre duas grandes revoltas judaicas: a Revolta da Diáspora (115–117 d.C.) e a Revolta de Bar Kokhba (132–136 d.C.), o que levou as autoridades romanas a suspeitarem que as atividades da dupla estavam ligadas a uma conspiração contra o Império.

Aliás, o papiro menciona Tineius Rufus, governador da Judeia durante a Revolta de Bar Kokhba, e situa as ações dos acusados no contexto da visita do imperador Adriano à região, entre 129 e 130 d.C.

Essa ligação sugere que os romanos viam com extrema desconfiança qualquer atividade ilegal na zona — especialmente aquelas que pudessem ser interpretadas como um desafio à autoridade imperial.

Implicações econômicas e sociais

Um dos aspectos mais intrigantes do caso é a ausência de um benefício econômico claro na libertação fraudulenta de escravizados, o que levanta dúvidas sobre as motivações dos acusados.

Entre as hipóteses consideradas está a possibilidade de que o caso estivesse relacionado ao tráfico de pessoas ou à tradição judaica de redimir escravizados judeus — prática baseada em preceitos bíblicos.

E tem mais...

O documento também oferece informações valiosas sobre a administração legal romana no Mediterrâneo Oriental, confirmando a existência de instituições como as inspeções judiciais feitas pelo governador da Judeia e o serviço obrigatório de jurados nos tribunais provinciais.

Estruturas amplamente documentadas no Egito agora podem ser confirmadas em outras regiões do Império, reforçando a imagem de Roma como um Estado altamente organizado, com um sistema jurídico de fiscalização que chegava até mesmo às áreas mais remotas.

O enigma do papiro

O papiro P. Cotton foi encontrado no Deserto da Judeia, possivelmente em uma caverna usada como refúgio durante a revolta de Bar Kokhba. O curioso é que sua preservação ainda é um mistério, já que documentos judiciais raramente sobrevivem fora dos arquivos romanos.

Segundo os historiadores, é possível que o julgamento nunca tenha sido concluído devido à eclosão do conflito, o que teria levado os acusados a se esconderem — levando consigo o documento.

Seja como for, estamos diante de uma daquelas descobertas raras, um achado extraordinário que oferece uma visão sem precedentes sobre a administração da justiça nas províncias romanas da Judeia e da Arábia.

Ele não apenas nos revela os mecanismos legais do Império, mas também lança luz sobre as tensões políticas e sociais que marcaram aquele período — especialmente em uma região onde a resistência a Roma era constante.

O poder, ontem e hoje

Se quisermos ir além, o documento também revela muito sobre o funcionamento das elites políticas de Roma, mostrando como o império regulava a economia e combatia fraudes — mesmo em seus territórios mais distantes.

Além disso, sugere que os romanos encaravam qualquer atividade ilegal em contextos de agitação política com desconfiança, interpretando-a como uma ameaça potencial à sua autoridade.

No fim das contas, a política e o poder… não mudaram tanto assim desde então.

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