A pandemia de Covid-19 marcou o começo do século 21 e deixou mais de 700 mil mortos no Brasil. O vírus, que foi registrado primeiro em Wuhan, na China, se espalhou pelo mundo através de viajantes e pela falta de quarentenas para quem teve contato com infectados. Cientistas do mundo todo fizeram esforços de pesquisa para entender como evitar mais mortes, desenvolver uma vacina para o vírus e salvar o maior número de vidas possível. O que poucos sabem é que alguns pesquisadores estudaram um evento de World of Warcraft para entender como o coronavírus poderia se comportar e como evitar sua propagação.
Sangue Corrompido
Tudo começou em setembro de 2005. A Blizzard Entertainment tinha lançado World of Warcraft há quase um ano e introduziu uma missão chamada Zul'Gurub. Nela, diversos jogadores exploravam uma dungeon e no final enfrentavam Hakkar, o Devorador de Almas. Ele tinha uma habilidade chamada Sangue Corrompido, que causava 9 de dano e mais 2 a cada segundo por 10 segundos aos jogadores atingidos. O efeito também contaminava jogadores próximos e pets utilizados na batalha, que podiam ser dispensados após a batalha, pausando quaisquer efeitos aos quais eles estivessem submetidos. Da próxima vez que os companheiros fossem utilizados, os efeitos seriam reativados. E aí é que está o problema.
Cidades com cadáveres cobrindo as ruas
Após vencer Hakkar, os jogadores saíam da dungeon e voltavam para as cidades próximas para se curar, comprar e vender itens, nada de diferente do fim de uma missão comum. O problema é que alguns ativavam seus pets contaminados com Sangue Corrompido nas cidades e acabavam contaminando jogadores de níveis mais baixo com a “doença”. Isso fez com que ela se espalhasse e dizimasse populações inteiras, transformando cidades em cemitérios a céu aberto. Outro agravante é que NPCs (non-playable characters, personagens não jogáveis em tradução livre) também estavam sujeitos ao problema, mas não sofriam danos ou morriam, apenas espalhavam Sangue Contaminado, deixando outros jogadores doentes.

Isolamento, sabotagem, o fim do servidor e o retorno do Sangue Corrompido
Quando a contaminação foi percebida, a Blizzard começou a incentivar que os jogadores “doentes” evitassem áreas livres do problema, em uma espécie de quarentena. Mas a medida não funcionou por falta de adesão e por não haver como bloquear uma parte do jogo para limitar o espaço atingido pelo Sangue Corrompido. A única maneira realmente efetiva de controlar o avanço da doença foi resetar os servidores. Mas essa não foi a última vez que a doença apareceu no jogo. Em 2024, um jogador descobriu como reproduzir os efeitos do Sangue Corrompido, mas sua propagação foi rapidamente controlada e não causou o mesmo caos que 19 anos antes.
Usando jogos para estudar pandemias
O caos no WoW foi tão grande que chamou a atenção de cientistas. Em 2007, pesquisadores da Tufts University School of Medicine, em Boston, analisaram o fenômeno e traçaram diversos paralelos com pandemias do mundo offline. No artigo “The untapped potential of virtual game worlds to shed light on real world epidemics”, de Eric T. Lofgren e Nina H. Ferfferman, publicado na edição de setembro de 2007 da revista Lancet, eles apontam que essa foi a primeira vez que um vírus virtual infectou um ser humano virtual de maneira que se assemelha remotamente a um evento epidemiológico real. Em entrevista para o Washington Post, em 2020, Nina Ferfferman, que era jogadora de WoW durante o evento, afirmou que “o incidente ajudou a informar sua pesquisa sobre modelagem preditiva em torno da covid-19”.
Segundo os pesquisadores, a habilidade de se transportar de onde enfrentaram Hakkar para as cidades funcionou como os vôos que levam vírus de um local para outro. Os pets funcionaram como vetores da doença; personagens focados em cura seriam a linha de frente de enfrentamento à doença; jogadores de níveis mais altos seriam como pessoas que tiveram sintomas brandos e melhoraram sem muitos problemas, e os de níveis mais baixo, crianças e outras populações mais frágeis. “Todos juntos, esses aspectos aparentemente inócuos do mundo do jogo, cada um refletindo diretamente um aspecto da epidemiologia do mundo real, permitiram que o que deveria ter sido um ponto de interesse muito menor em uma pequena área do jogo, atendendo a um subconjunto muito específico de jogadores, se tornasse a primeira instância online de praga descontrolada a afetar milhões de americanos, asiáticos e europeus em casa”, explicam no artigo.
Para os pesquisadores, esse tipo de evento complexo em um MMORPG (Massive Multiplayer Online Role Playing Game, gênero de jogo que descreve World of Warcraft) aponta como os jogos podem ser usados para estudar eventos pandêmicos de maneira mais acertada que os programas criados especificamente para isso. “Modelos de computador, que permitem experimentação em larga escala em populações virtuais sem tais limitações, carecem da variabilidade e dos resultados inesperados que surgem de dentro do sistema, não pela natureza da doença, mas pela natureza dos hospedeiros que ela infecta. Simulações de agentes humanos, onde os sujeitos são virtuais, mas suas ações são controladas por seres humanos interagindo entre si, podem potencialmente preencher a lacuna entre estudos epidemiológicos do mundo real e simulações de computador em larga escala”, afirmam no artigo.
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