“Se atingirmos o nosso objetivo, será desencadeada uma revolução na física”: falamos com Santiago Folgueras, físico do CERN

  • Este jovem físico de partículas ganhou uma ajuda 'Starting Grant' no valor de 1,5 milhões de euros.

  • Seu projeto INTREPID será essencial para processar as informações fornecidas pelo LHC de alta luminosidade.

Revolução física. Imagem: Xataka Brasil
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Sofia Bedeschi

Redatora

Jornalista com mais de 5 anos de experiência no ramo digital. Entusiasta pela cultura pop, games e claro: tecnologia, principalmente com novas experiências incluídas na rotina. 

Santiago Folgueras é um jovem físico de partículas formado pela Universidade de Oviedo, pela Universidade Purdue, em Indiana (EUA), e pelo CERN (Suíça). Em 2017, ele retornou à Universidade de Oviedo com um contrato de professor assistente.

Desde então, trabalha nesta instituição no mesmo grupo em que se formou, mas explorando uma linha de pesquisa diferente da que o grupo seguia quando Santiago fez seu doutorado.

Sua paixão pela física surgiu muito cedo, e sua capacidade didática, como vocês irão perceber, é indiscutível. Além disso, Santiago exemplifica perfeitamente o que é possível alcançar com esforço e dedicação. Ele acaba de ganhar uma ajuda Starting Grant do Conselho Europeu de Pesquisa, no valor de 1,5 milhões de euros, para liderar o projeto INTREPID.

Este ambicioso projeto, que terá pelo menos cinco anos de duração, busca utilizar inteligência artificial e placas programáveis de última geração para melhorar o sistema de filtragem do experimento CMS no CERN. Assim é como Santiago quer participar do esclarecimento dos mistérios do universo.

INTREPID terá um papel crucial na busca pela nova física tão esperada

Para entender bem no que consiste INTREPID, o projeto que você lidera no CERN, acho que é necessário primeiro entendermos o que é um sistema de trigger…

Exatamente. São ferramentas eletrônicas e informáticas necessárias para controlar os experimentos de física de partículas. No LHC, em particular, acontecem 40 milhões de colisões por segundo, o que gera uma quantidade enorme de dados que não pode ser armazenada em nenhum lugar. Por essa razão, precisamos de um sistema que seja capaz de analisar os dados em tempo real e tomar uma decisão sobre a colisão que acabou de ocorrer.

A decisão, no final das contas, consiste em determinar se devemos guardar essas informações ou descartá-las. O sistema de trigger é responsável por realizar esse processo de análise e filtragem, além de reduzir a quantidade de dados, passando de 40 milhões de colisões por segundo para 750.000.

Depois, uma segunda filtragem reduz ainda mais esse número para cerca de 5.000 colisões por segundo.

Essas são as especificações do sistema de trigger que estamos construindo, e ele deve estar pronto até 2030. O sistema que usamos atualmente é ligeiramente diferente, mas a ideia é a mesma. De qualquer forma, o primeiro dos dois passos é eletrônico, pois envolve placas programáveis, enquanto o segundo passo é realizado por uma granja de computadores, que consegue fazer uma filtragem mais detalhada.

INTREPID é uma iniciativa muito ambiciosa. Você pode explicar de maneira didática em que consiste?

O que queremos fazer com o projeto INTREPID é desenvolver algoritmos ou melhorias para o sistema de trigger que vamos construir até 2030. As placas que utilizamos são placas programáveis FPGA, e a ideia por trás do projeto é levar o sistema de trigger que estamos criando a um nível mais avançado. Do ponto de vista tecnológico, queremos testar novas placas que possuem nós de inteligência artificial e que, essencialmente, permitem a inferência de redes neurais diretamente na própria placa.

"Um dos grandes pilares do projeto consiste em tentar ver se essa tecnologia é aplicável ao nosso problema de trigger."

Também precisamos testar se essas placas são capazes de funcionar dentro da faixa de latência que temos. O que chamamos de tempo real. Os fornecedores das placas informam que o tempo real delas está na faixa dos milissegundos, mas nós precisamos de microsegundos. Precisamos chegar a 12 microsegundos para que funcione adequadamente.

Um dos pilares do projeto é tentar ver se essa tecnologia é viável para o nosso problema de trigger, e o segundo pilar envolve tentar ser mais sensíveis a um tipo de partículas deslocadas. Essas partículas não são geradas no ponto de interação das colisões — onde a maior parte das partículas são geradas — mas em outros pontos.

Pode ser que alguma partícula tenha viajado um pouco e se desintegre mais adiante, no meio do detector. O sistema que estamos utilizando tem uma certa sensibilidade a esse tipo de partículas, mas pode não detectá-las devido ao volume de dados que processamos. Com o INTREPID, planejamos mudar a arquitetura do sistema de trigger e ver se podemos recuperar essas partículas geradas mais longe, até dez metros além do ponto de interação.

Original O detector CMS é uma das máquinas mais complexas já criadas pelo homem. E suas dimensões são titânicas. De fato, ele é um cilindro de 21 metros de comprimento, 16 metros de diâmetro e 12.500 toneladas.

Intuo que procurar sinais quase indetectáveis na imensa quantidade de informações coletadas pelo experimento CMS deve ser como procurar uma agulha no palheiro. Qual é a estratégia que você tem em mente ao aplicar a inteligência artificial para filtrar esse enorme volume de informações gerado pelas colisões de partículas no LHC?

O que você tenta fazer é procurar coisas que já conhece. É um problema de reconstrução, onde é necessário identificar padrões. Você precisa conectar pontos. As partículas deixam sinais pontuais em diferentes camadas do detector, então, temos que unir esses pontos como se estivéssemos usando um lápis. O ser humano consegue fazer isso fantasticamente bem, mas um computador não faz isso tão bem.

Os algoritmos de inteligência artificial, especialmente os algoritmos de grafos, devem ser muito eficientes ao fazer esse tipo de conexão de pontos que determinam a trajetória da partícula. Além disso, o problema vai ficando mais complicado dependendo da região do detector com a qual estamos trabalhando.

Há regiões que são muito fáceis, no sentido de que o campo magnético é muito uniforme e não há lacunas, então os algoritmos analíticos funcionam maravilhosamente bem nesse cenário. No entanto, em outras regiões do detector, o campo magnético já não é uniforme, o que faz com que a geometria mude. A uniformidade já não é a mesma.

O olho humano percebe isso muito bem, mas um algoritmo analítico já não consegue detectar com a mesma precisão, o que acaba resultando em reconstrução de muito ruído, que precisa ser filtrado posteriormente. Eu acredito que a inteligência artificial vai nos ajudar bastante, porque ela foi criada justamente para isso: replicar o pensamento humano.

A inteligência artificial já está fazendo a diferença nos experimentos do CERN

Quais respostas você espera encontrar nesses sinais tão tênues, quase indetectáveis, relacionados às partículas que vocês pretendem identificar com seu sofisticado sistema de filtragem?

A chave é que estamos coletando dados há alguns anos e, até agora, eles se encaixam perfeitamente com as previsões do Modelo Padrão. Não há nenhum tipo de desvio, e todos os que ocorreram acabamos entendendo ou refutando.

Nesse contexto, uma questão surge: será que estamos realmente olhando em todos os lugares? E uma das coisas que não estamos observando são essas partículas deslocadas. Existem vários modelos teóricos que preveem esse tipo de sinal, então é um pouco como o dilema da galinha e do ovo: você não sabe o que veio primeiro.

"Se a nova física estiver nesses sinais, agora mesmo estamos perdendo ela. Estamos cegos diante disso."

Talvez o fato de não termos encontrado nada tenha levado ao desenvolvimento de modelos teóricos, ou talvez seja o contrário. De qualquer forma, está claro que são sinais que não estamos conseguindo detectar. Agora acreditamos que somos capazes de identificá-los com uma eficiência de cerca de 20%. A limitação é imposta pelo próprio sistema.

Se a nova física estiver nesses sinais, agora mesmo estamos perdendo ela. Estamos cegos diante disso. Por isso, nosso objetivo é tentar recuperá-los, se existirem, para que possamos vê-los.

Se conseguirmos, será o início de uma revolução na física, porque será necessário explicar de onde essas partículas vêm e por que elas aparecem.

Teremos que desenvolver novos modelos que sejam capazes de acomodá-las e ir além do Modelo Padrão. Existe a possibilidade de que eles nos ajudem a entender melhor a matéria escura, ou nos expliquem por que os neutrinos têm massa, ou por que não há antimatéria no universo.

Não sabemos com certeza que respostas vamos encontrar, mas está claro que, se encontrarmos algo tão exótico quanto o que estamos buscando, vamos obter alguma resposta. Será o fim do Modelo Padrão. Teremos encontrado nova física e teremos que começar a nos questionar novamente.

Há algum outro campo além do reconhecimento de padrões onde a inteligência artificial pode fazer a diferença na pesquisa em física de partículas?

Claro. Atualmente, estamos utilizando a IA em todos os níveis. A utilizamos em problemas de classificação, que é outro desafio clássico quando você está analisando uma grande quantidade de dados. Fomos nós [os físicos do CERN] que, em determinado momento, colocamos a palavra "big" antes de "data". O Google já nos ultrapassou nesse campo, mas, na época, éramos os grandes geradores e consumidores de dados.

No final, estamos procurando a agulha no palheiro de que você falou antes. Estamos buscando ela muitas vezes para encontrar padrões, e uma vez que encontramos, tentamos identificar quais processos de física estão envolvidos.

"O que queremos é buscar além desse sinal avassalador descrito pelo Modelo Padrão para encontrar novos processos."

Tudo são processos de fundo, pois a maior parte do que vemos é o fundo, que nada mais é do que tudo o que já foi descrito pelo Modelo Padrão e que, portanto, já medimos e entendemos com certa precisão. O que queremos é procurar além desse fundo descrito pelo Modelo Padrão para encontrar novos processos que acontecem muito raramente e que podem estar associados a nova física.

Nesse contexto, o que precisamos fazer é um exercício de classificação para separar o fundo do sinal, e a inteligência artificial é a ferramenta que usamos diariamente para classificar todo tipo de coisas, desde processos de física de sinal de fundo até objetos, como elétrons ou ** múons**. Usamos também para otimizar nossos algoritmos de reconstrução.

Você contempla com otimismo a possibilidade de que essa nova física tão esperada chegue em um prazo relativamente curto?

Sim, confio nisso. Caso contrário, nosso campo estaria completamente perdido. Realmente acredito que o HL-LHC (LHC de alta luminosidade) nos orientará um pouco. Certamente não será o momento de um grande descobrimento, porque a energia disponível ainda será muito modesta, mas a quantidade de dados que vamos ser capazes de coletar provavelmente nos dará informações valiosas.

Algo com a capacidade de indicar como deve ser a próxima máquina que teremos que construir: se devemos partir para um colisionador hadrônico em uma certa energia, ou se é preferível um colisionador de elétrons mais preciso. Espero que, com o HL-LHC e tudo o que vamos desenvolver até lá, que é muito, possamos ter alguma evidência que nos faça repensar sobre nova física.

Original Com nada menos que 40 milhões de colisões por segundo ocorrendo no LHC, é essencial filtrar essa enorme quantidade de informações para processá-las e armazená-las em algum lugar.

Ainda não temos a resposta para duas perguntas fundamentais: qual é a natureza da matéria escura e qual é a origem da massa dos neutrinos. Você confia que o INTREPID possa fazer contribuições importantes nessa busca em particular?

Sim, de fato, esse é o grande objetivo do projeto. Todas as melhorias que desenvolvermos serão anteriores à implementação do HL-LHC, e nosso propósito é que estejam prontas para começar a operar simultaneamente ao HL-LHC. Se ocorrer um descobrimento, a resposta virá após o projeto, porque sua consequência será a semente desses resultados, mais do que uma consequência direta do próprio projeto.

O grande objetivo do INTREPID é capturar os dados que estamos perdendo agora. Pode ser que não estejamos perdendo esses dados porque eles não estão lá, mas também é possível que os estejamos perdendo porque não estamos vendo.

O FCC é o candidato número 1 para suceder o LHC de alta luminosidade

O que virá depois do HL-LHC? O mais razoável, após aumentar a luminosidade do acelerador, é aumentar o nível de energia, certo?

Com certeza. Para nós, isso é a chave. Se você quer continuar fazendo uma máquina de descobertas, você precisa ir para uma energia mais alta. Já estamos tendo conversas e desenhando estratégias para construir outro acelerador ainda maior e capaz de atingir energias muito mais altas. A dúvida que temos é se devemos optar por um acelerador de elétrons ou de protons.

Além disso, existem vários projetos de outros tipos de aceleradores, como colisionadores de múons ou aceleradores lineares, que também podem ser interessantes. A comunidade científica está avaliando qual direção seguir. Parece claro que o FCC (Future Circular Collider) é a máquina que queremos construir, mas se aparecer algo no HL-LHC, ainda temos margem de manobra para mudar de direção e tomar outra decisão.

O que diria às pessoas que acreditam que não vale a pena investir o dinheiro dos contribuintes no CERN? Por que é importante apoiar a ciência de ponta e o trabalho dos cientistas que trabalham com física de partículas?

Primeiramente, porque acredito que o conhecimento pelo conhecimento é fundamental. Sempre houve pessoas dedicadas ao conhecimento pelo simples prazer de conhecê-lo. Além disso, a pesquisa em ciência básica traz grandes avanços tecnológicos para a sociedade. Se não houver pessoas fazendo ciência básica, isso não acontece. E mais, esses desenvolvimentos tecnológicos chegam de graça à sociedade, pois não geram patentes.

No CERN, foram desenvolvidas, entre muitas outras inovações tecnológicas, a world wide web, a tecnologia de aceleradores de partículas que é usada atualmente no tratamento do câncer, os sistemas de crioterapia ou criogenia que já estão chegando à sociedade, e a tecnologia de levitação magnética utilizada em alguns trens de última geração.

Minha última pergunta é um pouco mais pessoal. Se tivesse a oportunidade de encontrar a resposta para apenas uma das grandes perguntas das quais falamos durante nossa conversa, qual seria essa pergunta? O que mais te empolga e a que mais gostaria de contribuir?

A matéria escura. Eu adoraria saber o que é a matéria escura. Sabemos que ela representa 25% do universo. Acho incrível que, apesar de nossos esforços, atualmente só conheçamos 5% do universo, que é a matéria ordinária do cosmos.

Ser capaz de dar uma resposta a esse 25% do universo seria crucial, embora ainda faltaríamos muito mais para entender, pois acreditamos que os 70% restantes são energia escura. Acho que isso seria apaixonante. Já trabalhamos nessa linha há muitos anos de diferentes maneiras, mas sempre buscando a resposta para essa pergunta tão fascinante.

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