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A Toyota ostentava uma filosofia “kaizen” e um perfeccionismo doentio; Tesla e BYD têm sérias dúvidas de que seja realmente útil

  • Tesla e BYD jogam com a vantagem de serem "nativos digitais" do carro elétrico

  • A Toyota e outros fabricantes tradicionais produzem com materiais e processos mais caros em tempo e dinheiro

Será o fim da filosofia Kaizen? / Imagem: Lexus
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Victor Bianchin

Redator

Victor Bianchin é jornalista.

Quer um carro confiável? Compre um automóvel japonês.

Esse é, sem dúvida, o ditado que marcou a indústria por anos. É o que apontam os principais estudos de mercado que analisam falhas e defeitos relatados pelos consumidores. Seja na Espanha ou nos Estados Unidos, os relatórios geralmente colocam as empresas japonesas no topo.

Em um dos relatórios mais recentes da Consumer Reports (que avalia a confiabilidade dos veículos desde 1939), os dados da Visual Capitalist deixavam poucas dúvidas: das sete marcas mais confiáveis do mercado, seis eram japonesas.

A única exceção era a Mini (britânica e pertencente à BMW), que superava Acura, Honda, Subaru e Mazda. Acima da Mini, a Toyota ocupava a segunda posição e a Lexus, pertencente à Toyota, estava no topo do ranking. Além disso, com uma diferença clara. Entre Mini e Mazda (respectivamente terceira e sétima marcas mais confiáveis), havia uma diferença de quatro pontos. No entanto, a Toyota superava a Mini por cinco pontos, e a Lexus, por oito. Assim, o intervalo entre as duas primeiras colocadas e a última do pódio era enorme.

Para explicar como se chegou a esse ponto, costuma-se citar a filosofia Kaizen, da qual a Mazda tanto se orgulha. A ideia central desse método de trabalho é implementar pequenas mudanças em uma melhoria contínua, sem grandes rupturas, mas cuja soma leva à maior perfeição possível.

O perfeccionismo dos japoneses e o amor pelo detalhe se refletem perfeitamente na figura dos Takumi, os artesãos da Lexus que inspecionam os carros manualmente para detectar qualquer imperfeição mínima. "Trata-se de como um automóvel se sente ao toque ou da experiência de estar sentado dentro dele; os robôs não podem replicar isso", afirmou Katsuaki Suganuma, funcionário da Lexus com essa função, em uma entrevista.

No entanto, toda essa paixão pela perfeição e pelos detalhes pode estar ameaçada pela nova forma de construir carros. Um modelo que desafia a liderança da Toyota com um processo mais rápido, menos detalhista e que ignora parte do que foi feito até agora porque, simplesmente, o carro elétrico mudou a maneira de produzir veículos.

Detalhes que fazem a diferença

Toda essa paixão pelo detalhe foi o principal motivo que levou a Toyota ao topo do mercado automobilístico. Também impulsionou outras montadoras japonesas ao topo dos rankings de confiabilidade. Ao mesmo tempo, esses mesmos detalhes podem reduzir seriamente sua competitividade.

A Bloomberg explica que o melhor exemplo disso está a algumas horas de Tóquio, em uma viagem de trem-bala. Lá, a empresa de engenharia reversa Caresoft Global transformou uma antiga escola em um centro de estudos para analisar como a Tesla e fabricantes asiáticos como a BYD conseguem produzir seus veículos muito mais rapidamente e a um custo muito menor.

A resposta está no fato de terem construído sua identidade em torno do veículo elétrico ou altamente eletrificado. São, por assim dizer, “nativos digitais” do carro elétrico. Essa abordagem diferente permitiu que concebessem a estrutura do veículo de maneira completamente inovadora.

A Tesla, por exemplo, sempre defendeu que grande parte de seu produto se baseia no software. Eliminando tudo o que considera supérfluo, a empresa criou um carro mais barato e com uma identidade própria. A BYD seguiu um caminho semelhante, com interiores livres de botões e uma tela rotatória que se tornou sua marca registrada.

Mas a verdadeira vantagem dessas empresas está debaixo da carroceria. Os funcionários da Caresoft Global citam como exemplo a "peça n.º 55330-42410 da Toyota". Esse número faz referência a uma barra de aço de 9 kg conhecida como "viga transversal". Essa peça oferece suporte ao volante, ao painel e reforça a segurança em caso de colisão.

Nos carros da Tesla e da BYD analisados pela empresa, essa mesma peça foi substituída por um grande componente de plástico. Com isso, conseguem uma redução significativa de peso (cerca de 6 kg), mas, sobretudo, reduzem o custo de produção e montagem.

O motivo dessa substituição é claro: não há necessidade de usar aço. Além das funções estruturais, a Toyota sempre montou essa barra com aço porque ela reduz significativamente as vibrações dos motores a combustão. No entanto, o Toyota bZ4X, um carro elétrico, não possui um motor a gasolina, mas, ainda assim, mantém a barra de aço.

Já a Tesla e a BYD optaram pela peça de plástico porque nunca cogitaram usar a estrutura tradicional. Seus veículos foram projetados do zero para a tecnologia elétrica, em vez de serem apenas uma adaptação de carros a combustão movidos agora por baterias.

Essa mudança de paradigma está prejudicando os fabricantes tradicionais. Segundo a Goldman Sachs, em dados citados pela Bloomberg, um carro elétrico tem, em média, 11.000 peças – dois terços a menos do que um equivalente a gasolina. "80% da tecnologia é fácil de substituir, mas os 20% restantes são os mais importantes", explicou Hiroki Nakajima, diretor de tecnologia da Toyota, ao veículo econômico durante a última CES.

É nesses 20% que a Tesla e os fabricantes chineses de carros elétricos parecem estar conquistando uma grande vantagem. A Toyota e a Ford (que chegou a definir os fabricantes chineses como uma "ameaça existencial") têm buscado soluções desmontando veículos elétricos da Tesla e da BYD para entender como são feitos e, principalmente, onde podem melhorar dentro de suas próprias condições.

Além de influenciar diretamente os materiais, o peso e as peças utilizadas, Tesla e BYD conquistaram uma vantagem substancial em tempo e custo de produção dentro de suas fábricas. A técnica de produzir grandes peças que antes eram montadas separadamente já está sendo adotada por grande parte da indústria. Para se ter uma ideia do salto quantitativo, a Reuters afirma que a Tesla precisa de apenas 10 horas para fabricar um Model Y, enquanto a Volkswagen leva 30 horas para produzir um ID.3.

Em 2022, essa forma de produção já permitia à Tesla lucrar seis vezes mais por carro vendido do que a Toyota. Embora os japoneses continuem sendo os maiores fabricantes de automóveis do mundo, precisam ganhar mais espaço no mercado de veículos elétricos para não ficarem para trás. Seus executivos fizeram várias declarações afirmando que essa não será a única tecnologia dominante, mas a empresa não pode se dar ao luxo de ser irrelevante no maior mercado de carros elétricos (China) e em uma Europa que caminha para a eletrificação da frota.

A simplicidade do carro elétrico permitiu que a Tesla levasse a automação da produção além do que qualquer outro fabricante e estudasse novas formas de evolução, transformando seus veículos em verdadeiros quebra-cabeças com poucas peças. Segundo especialistas em engenharia reversa, a Tesla, por exemplo, optou por fixar os bancos diretamente ao pacote de baterias, simplificando um processo que, em outras montadoras, é muito mais complexo.

A BYD segue uma estratégia semelhante de simplificação e eliminação de peças. Seu trem de força, que, em outras montadoras, é composto por oito componentes distintos, foi reduzido a um único módulo onde hardware e software estão totalmente integrados.

A BYD consegue isso porque verticaliza grande parte de sua produção, fabricando até 40% de suas próprias peças. Isso reduz drasticamente o tempo e os custos, garantindo uma produção sempre ajustada à demanda e sem atrasos. "Eles fazem suas próprias baterias. Fazem seus motores. Fazem sua carroceria. Produzem a dianteira e a traseira, os faróis, os painéis das portas, o console. É um salto quântico. Isso foge totalmente da filosofia Kaizen", afirmou Woychowski, presidente da Caresoft Global, à Bloomberg.

Essa mudança radical na filosofia de trabalho colocou a Tesla e os fabricantes chineses muito à frente dos japoneses e ocidentais em termos de produtividade. Um bom exemplo disso é como empresas totalmente alheias à fabricação de automóveis, mas com vasta experiência na produção de produtos tecnológicos, como a Foxconn, estão interessadas em fabricar veículos.

Mas, acima de tudo, essa abordagem lhes permitiu ganhar vantagem porque começaram do zero. Enquanto montadoras com décadas de história enfrentam uma difícil reestruturação em suas fábricas, resultando em centenas ou milhares de demissões, Tesla e empresas como BYD precisam apenas se concentrar em como continuar crescendo e expandindo suas fábricas sem superestimar a demanda.

A Toyota e os fabricantes tradicionais acumulam décadas de conhecimento na produção de automóveis. A grande questão é quanto desse conhecimento ainda pode ser aproveitado. Talvez tenha chegado o momento de a filosofia kaizen passar para um segundo plano.

Imagem | Lexus

Este texto foi traduzido/adaptado do site Xataka Espanha.

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