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Depois de séculos se perguntando sobre a origem de sua escultura de leão alado, Veneza descobriu uma coisa: ela é “made in China”

Um estudo descobriu que o famoso leão da Praça de São Marcos é feito de bronze chinês

Especialistas estão convencidos de que não é um leão, mas um "zhènmùshòu", uma figura funerária chinesa

Leão de Veneza pode ter vindo da China | Dominic Kurniawan Suryaputra (Unsplash)
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PH Mota

Redator

Jornalista há 15 anos, teve uma infância analógica cada vez mais conquistada pelos charmes das novas tecnologias. Do videocassete ao streaming, do Windows 3.1 aos celulares cada vez menores.

O leão alado da Praça de São Marcos é um dos símbolos mais reconhecíveis, icônicos, reproduzidos e fotografados por turistas em Veneza. Só que há um problema: tudo indica que a peça não é veneziana. Nem italiana. Nem mesmo europeia. Suas origens estariam a milhares de quilômetros do mar Adriático no Mediterrâneo, nas minas distantes da bacia do baixo rio Yangtze, na China. Além disso, a figura que admiramos há séculos na piazetta provavelmente nem é um leão no sentido estrito; seria um zhènmùshòu, uma figura funerária medieval.

Em suma, se a pesquisa recém-publicada por um grupo de acadêmicos italianos acertou em cheio, o famoso leão alado veneziano seria, na verdade, uma estátua "made in China".

Leão, um emblema universal

Talvez você tenha ido a Veneza, talvez não. Não importa. Em ambos os casos, você provavelmente reconhecerá o Leão de Veneza, a famosa escultura que fica em uma das grandes colunas que coroam a Piazzetta San Marco na cidade, um ponto de passagem obrigatório todos os anos para milhares de turistas durante suas visitas ao Vêneto.

A figura, feita de bronze e pesando cerca de 3 toneladas, mostra um leão alado. Sob as patas dianteiras, ele segura um livro, uma adição posterior que diz "Pax tibi Marce, evangelista meus" ("Paz a ti Marcos, meu evangelista"), a frase que, segundo a tradição religiosa, um anjo disse ao evangelista São Marcos quando ele foi surpreendido por uma violenta tempestade durante sua visita à lagoa de Veneza no primeiro século d.C.

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Qual é sua origem?

Boa pergunta. Resposta difícil. Alguns o associavam a Sandon, um deus de origem hitita, e especulavam que sua origem poderia ser em Tarso, na Ásia Menor, e até mesmo remontar ao terceiro século a.C., ou antes. Algumas teorias também sugerem que poderia ter sido uma figura assíria, indiana ou sassânida. O certo é que o leão alado se tornou um dos emblemas de Veneza, símbolo do evangelista Marcos e marca registrada da cidade.

Leões alados também podem ser encontrados em outras partes da capital do Vêneto, como a fachada da Basílica de São Marcos, a decoração do Palácio Ducal ou a Torre do Relógio. A figura até se infiltrou na bandeira da Sereníssima República de Veneza e na indústria cinematográfica por meio do Leone d'Oro, o maior prêmio do Festival de Cinema de Veneza. Apesar da enorme visibilidade, historiadores na Itália e no resto do mundo há muito olham para sua representação mais icônica, a da Praça de São Marcos, com uma pergunta insolúvel: qual é a origem exata da escultura que fica na coluna?

Peça "made in China"

Essa é a ideia fascinante recentemente apresentada por um grupo de especialistas da Universidade de Pádua, da Associação Internacional de Estudos Mediterrânicos e Orientais (Ismeo) e da Universidade Ca'Foscai de Veneza. Depois de unir forças e experiência em campos tão diversos como geologia, química, arqueologia e história da arte, a equipe chegou a uma conclusão curiosa: as origens do leão alado estão na China.

A primeira coisa que descobriram é que o cobre com o qual a escultura foi feita vem do gigante asiático, mais especificamente das minas da bacia do baixo rio Yangtze, na China. "Isso é confirmado pela análise precisa dos isótopos de chumbo, que deixam no bronze vestígios inconfundíveis das minas originais das quais o cobre foi extraído", esclarece a Universidade de Pádua. Suas conclusões foram apresentadas em setembro de 2024, durante um congresso internacional realizado em Veneza por ocasião do 700º aniversário da morte de Marco Polo.

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Não diga leão, diga 镇墓兽

Não é a única conclusão que a equipe compartilhou. Em declaração divulgada em setembro pela Universidade de Pádua e na qual destrincham parte de seu trabalho, os especialistas inserem outra ideia igualmente fascinante: "muito provavelmente" a figura do leão alado era originalmente um zhènmùshòu (镇墓兽), que poderia ser traduzido como "guardião do túmulo", uma figura funerária da Idade Média chinesa, durante a Dinastia Tang, que durou de 609 a 907 d.C.

A figura teria sido alterada. Segundo a EuroNews, o estudo multidisciplinar aponta que em algum momento de sua história alguém modificou o zhènmùshòu, cortando ou lixando certas partes, como dentes, bigodes e chifres, para que parecesse mais um leão do que uma criatura do folclore asiático. De qualquer forma, Massimo Vidale, professor de arqueologia que participou do estudo, deixa claro o que as análises mostram e o que é interpretação: "No momento, podemos dizer com alguma certeza que o cobre veio da China e que o estilo das partes originais da estátua corresponde às características formais chinesas."

Vínculo com a China

Não é a primeira vez que especialistas olharam para o gigante asiático quando se perguntam sobre as origens do leão alado da Praça de São Marcos, embora desta vez o estudo tenha alcançado um impacto especial, graças às análises que vinculam seu bronze – com nível de certeza de 95 a 98% – com as minas chinesas. Também por sua interpretação artística, que vincula o famoso leão a uma criatura tradicional da cultura chinesa.

"Para mim e meus coautores, as semelhanças com um zhènmùshòu são evidentes; mas temos que considerar as transformações importantes pelas quais a escultura Tang original passou – a mais importante e a mais antiga, se estivermos certos – de uma criatura híbrida sentada com chifres e asas para a imagem leonina horizontal que vemos hoje", diz o especialista ao jornal chinês Global Times. Uma das pistas estaria nas características faciais da escultura, semelhantes às de outros monumentos funerários encontrados em tumbas do distante período Tang.

Enigma resolvido?

O estudo esclarece, mas também levanta dúvidas em torno da origem da figura enigmática. A própria Universidade de Pádua reconhece isso, lembrando que, como em 1295, quando Marco Polo retornou de sua viagem, a estátua já estava erguida na coluna, "as circunstâncias de sua chegada permanecem um mistério". Especialistas apontam que ela provavelmente foi movida em pedaços e sugerem que pode estar relacionada às viagens de Niccolò e Maffeo, pai e tio de Marco, que entre 1264 e 1266 visitaram a corte em Pequim.

"Não há documentação sobre sua chegada. Sabemos apenas que o leão já estava na estátua em 1293. O papel dos parentes de Marco Polo é apenas especulação. A chegada anterior ao Oriente Próximo ou ao Mediterrâneo durante o intenso comércio ao longo da Rota da Seda é inteiramente possível", diz o professor e geólogo Gilberto Artioli, ao jornal chinês.

Imagens | Dominic Kurniawan Suryaputra (Unsplash), Sébastien Bertrand (Flickr), Pablo FJ (Flickr) e Rob Oo (Flickr)

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