Na Idade Média, havia uma moda culinária caríssima que hoje tornaria a comida intolerável: ela era banhada em especiarias

Nos grandes banquetes, não se economizava em especiarias, e há duas razões muito simples: paladar e status

Idade Média e comidas antigas. Imagem: Wikipedia 1, 2, 3 e 4
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Sofia Bedeschi

Redatora

Jornalista com mais de 5 anos de experiência no ramo digital. Entusiasta pela cultura pop, games e claro: tecnologia, principalmente com novas experiências incluídas na rotina. 

Cada um com o seu gosto. Mas se você fosse convidado por um grande senhor feudal da Idade Média, um conde ou barão rico que quisesse impressionar seus convidados com um banquete opulento à base de peixes, carnes, vinhos e doces, o melhor seria que seus gostos se inclinassem para uma comida hiper temperada.

Afinal, não era incomum que na mesa você se deparasse com uma bandeja de faisão mergulhado em um molho feito com 17 especiarias diferentes, tantas que seu sabor dificilmente agradaria ao paladar atual.

Talvez essa expectativa pareça pouco apetitosa, mas para os comensais medievais, fazia todo sentido.

Melhor com especiarias

Os comensais endinheirados da Idade Média adoravam especiarias. Muito. Tanto, que seus banquetes eram um verdadeiro desfile de temperos como gengibre, canela, pimenta preta, noz-moscada e açafrão, entre outros. Como exemplo, Michael Delahoyde, da Universidade Estadual de Washington, explica que um molho para carnes poderia conter até 17 especiarias diferentes.

Em outro exemplo recente, o El País falava de receitas com até 15 especiarias e muito açúcar.

Tudo no mesmo prato. Combinado.

Formando uma mistura de sabores que faria com que as comidas que enfeitavam os grandes banquetes dos nobres medievais dificilmente fossem comestíveis para os comensais do século 21. E isso (ironia culinária) sendo que nunca foi tão fácil encontrar especiarias como é hoje: basta entrar em qualquer supermercado e se deparar com prateleiras cheias delas.

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Uma janela gastronômica

Se sabemos o que e como comiam os nobres medievais, é graças ao trabalho dos historiadores e a obras como El Llibre de Sent Soví, um manuscrito que se destaca por várias razões: é o livro de receitas mais antigo desse tipo na Península Ibérica e, recentemente, protagonizou uma exposição sobre comida medieval em Valência.

A obra contém 72 receitas e data do século 15, embora os especialistas estejam convencidos de que ela é baseada em um original anterior, escrito em 1324 e agora perdido.

A obra é interessante não só pelas suas receitas. Ela também nos fala sobre como eram os comensais da Baixa Idade Média, talvez um pouco diferentes de nós em gostos, mas não em relação à atitude.

Além de apreciar o sabor dos pratos, eles gostavam de se exibir, usando a gastronomia como um símbolo de status. Valorizavam as cozinhas com grandes fogões, os trinchantes que cortavam e distribuíam a carne entre os convidados, as especiarias e o açúcar.

Cozinha e marketing (medieval).

"Comer todos nós temos que comer, todos os dias, mas na Idade Média não tinham as formas de se distinguir que temos hoje. Eles transformavam a comida em uma liturgia, um ritual em que demonstravam sua riqueza, e isso podia ser visto até fora, já que davam as sobras para as classes mais pobres. Era uma forma de demonstrar status", comenta Juan Vicente García Marsilla, catedrático de História Medieval e curador da exposição, ao El País.

O próprio livro de receitas do século 15, preservado em Valência, tem muito dessa pompa e prestígio que se buscava entre fogões e despensas. Em seu prólogo, há uma sugestão de que a obra original foi feita sob encomenda de um rei inglês, mas as receitas falam de outra realidade: um autor provavelmente valenciano ou catalão, habituado à tradição gastronômica do Mediterrâneo. "Marketing da época", resume García. Ao atribuir a obra a um chef estrangeiro e antigo, o livro buscava se imbuir de exotismo e prestígio.

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Por que tantas especiarias?

Em parte, pela questão do status. Hoje, talvez as encontremos em qualquer supermercado, mas há séculos, as especiarias e o açúcar eram luxos que não estavam ao alcance de todas as mesas. "As especiarias eram um sinal de luxo e opulência. Denotavam prestígio", comenta Delahoyde, que reflete sobre o valor peculiar dos livros de culinária medievais: provavelmente nem todos os cozinheiros sabiam ler, e os livros de receitas não eram usados na cozinha, mas sim conservados em coleções privadas.

Portanto... Serviam para os responsáveis pelas provisões?

Eram um símbolo de status? Ou talvez uma forma de conhecer os ingredientes exóticos de cada prato, temperos que de outra forma talvez passassem despercebidos pelos comensais?

Em busca de sabores… e de nome.

Analida Braeger apresenta algumas reflexões interessantes na Medievalist.net, uma plataforma fundada em 2008 e especializada em história medieval. Em um longo artigo sobre o tema, ela aponta que o paladar medieval se acostumou a alimentos fortemente temperados com especiarias, um símbolo de poder, impulsionado em parte pela origem exótica e pelas importações vindas do Oriente.

Na extensa lista, estavam presentes canela, cravo, noz-moscada, gengibre, pimenta, açafrão, macis, cardamomo e galanga.

Demanda insaciável.

"A demanda insaciável de especiarias por parte da Europa no final da Idade Média é um exemplo notável de uma mudança histórica drástica provocada pelas preferências dos consumidores", apontou Paul Freedman em 2012, em um artigo publicado no The Oxford Handbook of Food History.

O resultado são receitas como o frango com açúcar que podemos encontrar no manuscrito do século 15 preservado em Valência. Além disso, as especiarias não eram usadas apenas na cozinha, mas também tinham aplicações médicas.

Há quem afirme que, apesar de sua disponibilidade limitada e alto custo, uma grande parte das receitas dos livros de culinária dos séculos 13, 14 e 15 inclui especiarias, e que pelo menos algumas obras mencionam até 40 tipos diferentes.

De qualquer forma, é importante ter claro que a culinária da aristocracia não era a mesma das classes populares. Entre estas últimas, não era incomum que se consumisse comida fria devido ao custo.

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Revisando antigos tópicos

Como é comum com tudo relacionado à Idade Média, o uso das especiarias está envolto em estereótipos e preconceitos que nem sempre são precisos. Delahoyde lembra do "mito comum" de que os cozinheiros da época usavam tanto os temperos para disfarçar o sabor da carne estragada.

Afinal, não havia geladeiras nem congeladores para manter a carne fresca, certo? Então, por que não temperá-la bem?

Isso é pouco provável. E a razão é simples. Na Idade Média, as pessoas também eram conscientes da importância dos alimentos frescos, e quem tinha os recursos para comprar especiarias provavelmente não as usaria para esse fim.

Primeiro, porque as especiarias eram caras demais para serem desperdiçadas com carne podre. Segundo, porque não seria irracional pensar que, se um aristocrata podia ter cravo ou galanga em sua despensa, provavelmente ele também teria carne fresca.

Uma forma de conservar a comida?

Outro estereótipo comum é o de que as especiarias eram usadas para conservar os alimentos, mas Delahoyde insiste: "Os medievais não eram idiotas". Não faria sentido usá-las para esse fim quando a carne ou o peixe poderiam ser conservados com sal, vinagre, açúcar e mel.

Na verdade, o especialista lembra de um dado interessante: as especiarias perderam força na culinária a partir do século 17, muito antes de as geladeiras serem inventadas.

Será que a carne e o peixe pararam de estragar? Ou será que os gostos simplesmente mudaram?

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