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Se o Papa fosse mulher... A lenda medieval da Papisa Joanna

A Igreja já teve uma Papa Mulher. Imagem: Aventuras da História
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Sofia Bedeschi

Redatora

Jornalista com mais de 5 anos de experiência no ramo digital. Entusiasta pela cultura pop, games e claro: tecnologia, principalmente com novas experiências incluídas na rotina. 

Poucas figuras do imaginário medieval causam tanto fascínio — e desconforto — quanto a da Papisa Joana, uma mulher que, segundo uma lenda nascida na Idade Média, teria conseguido se tornar Papa disfarçada de homem, no século 9.

A maioria dos estudiosos modernos afirma que ela nunca existiu. Mesmo assim, seu nome atravessou séculos, foi registrado em crônicas, traduzido em gravuras, romances, peças de teatro, filmes e até cartas de tarô. A força da história não está na confirmação histórica, mas no que ela simboliza sobre exclusão, poder e silêncio institucional.

A origem da lenda

A primeira menção conhecida à Papisa Joana aparece por volta de 1250, na crônica do dominicano Jean de Mailly. Ele relata, sem citar nomes, o caso de uma mulher que, por seu talento e erudição, teria se tornado Papa ao longo de uma trajetória que começa com o disfarce masculino. Na versão mais famosa, popularizada anos depois por Martinho de Opava, Joana teria nascido em Mainz, na Alemanha, com o nome de Ioannes Anglicus (João, o Inglês).

A narrativa afirma que ela foi levada a Atenas por seu amante, obteve educação superior — um direito negado às mulheres da época — e tornou-se uma referência intelectual. Após chegar a Roma e ensinar artes liberais, teria sido eleita Papa por unanimidade.

O fim é sempre trágico: durante uma procissão, ela entra em trabalho de parto e dá à luz em público, revelando sua identidade. Em algumas versões, é executada. Em outras, vive o resto da vida num convento. Em todas, a lenda serve como alerta.

O corpo como escândalo

Mais do que uma curiosidade, a história da Papisa Joana abre espaço para uma reflexão profunda: por que, entre tantas lendas, essa sobreviveu por tanto tempo?

Segundo a professora Laura Kalas, especialista em literatura medieval, a explicação está no medo do feminino dentro da estrutura religiosa: “Na Idade Média, acreditava-se que o corpo da mulher era frio, instável e suscetível à imoralidade. Isso servia como justificativa teológica e biológica para mantê-las fora da Igreja.”

Joana não é descrita como má ou incompetente. Pelo contrário: ela ensina, lidera, pensa, escreve. O escândalo não está em suas ideias — mas no fato de ter um útero.

A função da lenda

Ao longo da história, a figura da Papisa foi usada de formas diferentes. Na Idade Média, como uma advertência para manter mulheres afastadas das esferas de poder. Na Reforma Protestante, foi resgatada como argumento contra a autoridade papal: se houve uma mulher no trono de Pedro — e a Igreja omitiu —, então toda a sucessão estaria corrompida.

Ao mesmo tempo, a Igreja tentou apagar os rastros. Um busto de Joana, que existia entre os papas na Catedral de Siena, foi removido em 1600. Textos oficiais passaram a ignorá-la completamente. Papas passaram a evitar uma rua em Roma onde, supostamente, teria ocorrido o parto público. E surgiu até a lenda da sedia stercoraria, uma cadeira com buraco por onde se verificaria, manualmente, se o novo Papa tinha testículos.

Não há provas de que essa prática tenha existido, mas o fato de ter sido contada como verdade já revela o impacto da história.

Joana como símbolo

A figura de Joana ressurge no século XIX em romances históricos e peças teatrais. No século XX, vira carta de tarô, filme, personagem de videogame. E nas últimas décadas, foi reinterpretada por autoras feministas como símbolo de resistência e transgressão.

Em Top Girls, peça da britânica Caryl Churchill, Joana participa de um jantar com outras figuras femininas históricas. Já em Pope Joan (1996), romance de Donna Woolfolk Cross adaptado ao cinema em 2009, ela é retratada como mulher inteligente e justa, que precisa negar sua identidade para existir no mundo clerical.

A lenda é também estudada por teólogas e historiadoras como uma alegoria sobre silenciamento feminino na história oficial. A cada novo olhar, Joana deixa de ser fraude e vira pergunta: por que tantas mulheres precisaram — e ainda precisam — se disfarçar para serem ouvidas?

E se ela existiu?

A maior parte da historiografia contemporânea rejeita a existência de Joana. Documentos da época não fazem referência a nenhum intervalo entre os papados de Leão IV e Bento III, onde ela supostamente teria reinado. Pesquisadores como David Blondel e Onofrio Panvinio demonstraram as inconsistências cronológicas da história.

Mesmo assim, o debate nunca cessou completamente. Em 2018, o arqueólogo Michael Habicht apresentou uma hipótese baseada em monogramas diferentes atribuídos ao Papa João VIII — sugerindo que, talvez, um deles tenha pertencido a Joana. A teoria não é aceita oficialmente, mas mostra como a lenda continua provocando novas interpretações.

Também existe um livro que conta toda a história da lenda. Ele está disponível na Amazon na faixa de R$20,00.

O que a Papisa Joana nos ensina

A Papisa Joana talvez nunca tenha existido. Mas a pergunta mais importante não é sobre o fato em si, e sim sobre por que essa história ainda incomoda tanto — e continua sendo contada.

Em um mundo em que mulheres seguem lutando por espaço em instituições centenárias, a lenda de Joana fala sobre exclusão, identidade, censura e o desejo de existir mesmo quando se é proibida de aparecer.

Ela pode ser mito. Mas é um mito que revela verdades.

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